terça-feira, 7 de junho de 2011

O disparo

Vocês não sabem o que é aguentar toda uma vida, sabem? O Velho na sombra da mangueira, sentado como um pedestal, lembrando a todos coisas que ninguém mais queria lembrar, coisas que eu nem sei dizer. Deixando claro que ele tinha sobrevivido contra a vontade de todos, De todos, Do Governo Inclusive, gritava às vezes. Ele dizia que nossos avós, a maioria, reclusos pela vergonha nos fundos dos quintais, eram traidores, que o haviam deixado sozinho com os soldados, Machos um caralho.
Segundo ele, os soldados lhe bateram muito, uma pancada no pé foi a pior e isso era responsável pelo calo que expunha como um troféu, em via pública, com os pés para a rua. O calo sou eu, porra, dizia às vezes. Gritada bêbado, Filhos da puta, Machos um caralho.
Dizem que o calo doía muito. Mas era pior na época das chuvas, quando tudo eram águas, subidas do rio ou caídas do céu. A friagem e a umidade invadiam as as ruas, as casas, os quartos e ossos de todos. Os pequenos animais procriavam e invadiam a vida diária. Mas a friagem lhe era pior, era quando ficava mais bravo, Eu estou comemorando, caralho, faz vinte anos que vocês me entregaram para os soldados, me deixaram morrer sozinho, mas eu voltei. Venham bater palmas, filhos da puta. Me pai dizia, Um dia alguém mata esse velho.
Mas nem aqueles que desejavam, esperavam; nem aqueles que esperavam queriam. Ninguém, enfim, acreditou quando ouviu o tiro de 38, naquele dia 15 de janeiro. Todos - quer dizer, eu não - correram para olhar a rua, se olharam e se contaram e só faltava o velho, Que porra, o Velho se matou, disse meu pai. Correram para o barraco da mangueira e os mais machos meteram logo o pé na porta, arrebentaram e entraram. Encontraram, o Velho sentando na velha cadeira de costas. Uma mão, caída, ainda segurava o revólver. Se apresaram a dizer que ele havia morrido.
Então perceberam o quanto ele era importante, o quanto nós o queríamos bem. Lavaram seu corpo, lhe fizeram um funeral magnífico, o enterraram em dois dias depois e hoje todos contamos suas histórias, falamos dele o bem que não foi possível falar em vida. Já começaram a vir gente perguntar por ele, uma mulher, se chama Dácia, vai escrever um livro.