domingo, 29 de novembro de 2009

A chave ligamundos


é claro que você está certo ao dizer que existe uma geografia econômica da cidade; do mesmo do modo existe uma geografia racial. Um territorialização forçada pelos cores e contas bancárias. Nem todos podem ir a todos os lugares. Mas como na fronteira ninguém é de ninguém, as coisas se complicam muito.
Todos vocês conhecem a bicicleta Monark aro/barra circular? Não conhecem? É essa monark que todos conhecemos. O que não sabemos é a verdadeira paixão que muitos a devotam. Pois, antes que qualquer outro, ela foi o veiculo da fronteira; existia inclusive algumas que vinham com um farol acionado pela energia captada no pneu dianteiro por um aparato, na época, de última geração. É muito provável que muitos hilluxianos de hoje, foram, algum dia, bons bicleteiros.
Contudo, o tempo passada e as coisas mudam; as pessoas mudam, os veículos agora são outros, uma S 10, uma Triton. O problema é que a saudade; essa  fica, e finca profundo.
Ontem, à tarde, atrevidamente, andava eu por uma rua por onde não é lícito andar aquele que ganhar menos de um milhão por ano; havia outro atrevido, de bicleta, uma monark, preta, velha; mas que mantinha o glamour de seus para-lamas cromados. Do lado da rua, estava sendo estacionada uma caminhonete branca, que nada nada vale 1000 vezes mais que a calanga véia; o bicicleteiro se assustou com um carro que passou veloz, se desequilibrou. A corrente caiu. O constrangimento era visível, até eu fiquei. O moço sem jeito de recolocar a corrente no lugar, meio bloqueado, eu ai pegar um graveto, quando o dono da Trinton branca desceu, olhou a monark com a profundidade de conhecedor e eu vi toda a sua nostalgia. Ele pegou, com a chave da Trinton, a corrente, recolocou-a sobre a catraca, bateu nas costas do outro e disse "vai lá". Limpou a graxa na calça Zomp e entrou no Praia Doce.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Entrecruzando olhares

Steve Bico,

um dos mais machos daqueles machos que lutaram contra o Apartheid na África do sul, disse uma vez a um juiz africaner: "Por quê vocês insistem em se chamarem "brancos"? São mais rosados que brancos!" O juiz havia lhe perguntado por que ele, que tinha uma tonalidade de pele mais clara, preferia que lhe chamassem de negro. Mas o que pode isso ter com a realidade araguainense de todos os dias? Nada; mas é um modo interessante de começar um texto, não é?
O fato é que, depois de ler isso em algum lugar, nunca mais pude olhar os brancos de outro modo. Para mim, eles são rosados. Corpos rosados, inteligências rosáceas, violentas. Acredito que isso se deve ao fato de que eles, quando expulsos para a fronteira, simulam uma superioridade racial, econômica, cósmica, sei lá mais eu quê; assumem ínfulas de emissários da divina providência que se manifestam de modo mais contundente na misura meio satânica com a qual investem seus rostos quando um mortal desses que vivem aqui - eu, por exemplo - se atreve a olhar nos seus olhos ou é vítima de um destino desafortunado e o seu olhar se cruza com um desses seres que acreditam, de verdade, que são superiores. Isso eu já havia notado, mas não de modo consciente.  Basta olhar, nenhum branco anda pelas ruas sem os seus óculos escuros. Símbolo de distinção social, sim, mas escudo contra os olhares dos pobres, pretos, mestiços, do meu - donosso - olhar esgueirarado, esganado.Anansiano.
Hoje, durante meu almoço, eu fui vítima de meu destino anansiano - você não sabe o que quero dizer? Estava eu comendo quando entrou umas senhoritas brancas, gente do sul, ricas provavelmente; corpos rosados, pensei. Meu olhar, de modo lasso, passeando pelo salão, se cruzou com o olhar azul de uma delas, e a reação foi imediata. Ela contraiu as sobrancelhas, repuxou os lábios e as bochechas, mostrou os dentes, de modo tão agressivo que eu parei com a carne de porco que mastigava esgulepadamente. Firmei o olhar! Ela endureçeu o dela como se raiasse com uma criança. Mas eu começei a rir desenfreadamente, o que a pertubou, ao que parece. Pois tudo que eu vi, em meio a meu espasmo, foi um corpo, caindo a bombordo, uns talheres e prato com beterabas voando a estibordo e uma platéia atônita pela impertinência de minha gargalhada bronca, de macho mestiço da fronteira, que ria com a boca aberta, alto, espantando os calangos que se aqueciam no sol do meio dia.


Ananse estava no mato, sentado sobre uma pedra. Havia terminado de cavar um poço. Mas não queria que a onça bebesse daquela água. Construiu um boneco e o untou com cola. A onça, muito esperta e entrona chegou e gritou com o boneco: "quero água". O boneco, como bom pedaço de panos e capim que era, ficou quieto. a Onça lascou-lhe a mão na orelha. A mão dela ficou pressa. Ela disse que ele a soltasse senão a outra mão "ia comer". Nada. La se foi a outra mão, o pé, o outro pé. A barriga. Toda grudada. Os animais de toda a floresta riam, gargalhavam estouvadamente. Ananse no meio deles.

sábado, 14 de novembro de 2009

E a fronteira, pra quê?


Sebastião Salgado

A fronteira tem mesmo isso de épico, sabe, de tema de aventuras; lugar desbordado, onde ninguém sabe quem é quem, nem por quê, nem como, nem praquê. Onde todos chegaram fugindo - como você mesmo - da puta mãe que os pariu num quartinho sujo de um hotel metropolitano, depois de uma gravidez escondida da familia burguesa; barriga contraída pela sua propensão para a maldade, para os desejos proibidos, para a brutalidade, pelo aprendizado pela dor, para tudo que seus pais também faziam escondido. Ela mesma filha de algum melhor amigo de seu pai, que se mudou para o Acre de repente. Ela que queria vir, que deseja viver num ambiente lodoso, ganhar dinheiro distribuindo o prazer e o consolo a tantos homens sem mulher, sem amor, mãe; o Padre, por exemplo; o pastor nos dias de santa-ceia, depois de ficar bêbado com o vinho da sobra, de tentar sodomia com a esposa e ser recusado com argumentos deuteronômicos. Sua mãe sim, sua mãe sabia. A fronteira não é um lugar de deleite; ela sabia que a dor tem um lugar no olhar desse machos. Queria aurir prazer dessa dor, dessa solidão; ter um lugar no coração deles, ser levada para sempre em suas memórias como aquela puta meiga, que dava de graça de vez em quando, e que cobrava mais barato dos machos machões, daqueles que já tinham batido na polícia tentando levar um tiro na cara e morrer rápido, com glória, e um lugar na memória de outros machos, sabe, esses ela adoraria. Mas ela não veio, se arrumou por lá. E enviou você, quer dizer, o expulsou.
Ela o enviou para cá, pra aprender. Mas você não aguenta, não; está viciadinho nos traços clássicos, pelas curvas perfeitas, pela perspectiva, isso é um bosta, pela sétima arte. Não quer viver sem ar-condicionado, teme os animaizinhos de Deus, as pessoas lhe aborreçem, o café expresso falta; teatro é uma maravilha, vc diz que falta cultura. Quer deixar isso de mão, ir embora; mas não pode, não consegue; ficar longe como? Está viciado! No seu mundo não há nada para contar, suas experiências não tem valor, só interesse. Nem profundidade. Quer mais histórias; que eu lhe conte o que aconteceu com o prefeito eleito de Rio Maria, que explique porque a lei aqui soa a-lheio. Mas eu me calo. Silêncio. Espero que me conte algo, me pague com a mesma moeda. Mas vem você com pensamento retilíneo, que aqui falta a civilização, que as fossas poluem o lençol freático, que os vermes. Será possível conversar com você? Como vou lhe contar nossas histórias se você só consegue ver carência? Algo a menos, que graça ao desenvolvimento, que um dia via chegar aqui, blá, blá..
Vou lhe contar algo, sabe, isso que você diz é mentira. Já lhe contei a história do "Corte", sim do corte de cabelo que fiz aqui, quando cheguei. Me dizia o mesmo barbeiro um dia desses que o mundo está ficando pior, que as coisas vão se acabando, que já não se fazem machos como antigamente, que ninguém anda armado, que a polícia agora, só eles querem ser os machos. Que merda, que as pessoas estão ficando fracas, que agora só cagam em vasinho branco e nem sabem o que é um bom sabugo, roletinho. Ele se perguntava como os seus netos poderão viver num mundo assim? E isso é verdade, sabe; o que "falta" é o que nos sobra, transborda. Essa diferença é o que faz de nossas menores viagens um épico, uma aventura pra inseguros, pra você! Mas, não pense que queremos que vá embora, não negamos você, somos generosos,  teimosos, sabe, vamos vencer pelo cansaço e por sua inquieta verve, seu vazio mendicante. Quando se der conta estará mais dentro que fora, sem saída. Brigando com a polícia em busca de um tiro de misericórdia; em busca de uma puta bondosa, de outro macho machão para matar ou para morrer. Quando se der conta, será um de nós, mais um na fronteira.

sábado, 7 de novembro de 2009

Leitura: essa desconhecida


Professor Rafael,

Outro dia,

uma autoridade no mundo da História da leitura me disse algo mais ou menos assim: "a leitura é o reino do"...ele usou uma palavra difícil e bonita, como foi mesmo? Não me lembro. Deixa pra lá... (Bem se eu lembrar até o final, eu digo).
Depois de frustar o leitor com uma história que não foi até o fim, conto outra, pode ser? O Chiquinho vai ver nisso uma questão de forma, sei lá; mas a verdade é que esqueci, viu? Ela era minha frase de efeito. Agora tenho quer ir para o plano B.
O cubano Antonio Benitez Rojo disse que existem dois níveis de leitura: aquele no qual o leitor lê a si mesmo e um outro, quando o leitor lê o "texto"; começa a encontrar não o "texto", mas a leitura que o autor propôs para o que escreveu. O texto em sim, esse é desconhecido. Ninguém nunca leu
Não sei o que pode ser ou não verdade, como diria Drummond, "sou apenas um homem simples" e "sinto que não devia falar dessas coisas", mas me dei conta de algo novo nos meandros de minha história pessoal com a leitura.
Antes de tudo quero dizer que o primeiro livro que li foi a Biblia, e que eu fiz um fichamentozinho dela para mostrar do que um macho é capaz; a partir de então tenho lido muito, tentando alcançar os que estão na minha frente, neste momento, como o José Saramago e o Pepetela. Por isso mesmo sempre adorei Borges e suas história de leitores, como Pierre... Mas a Borges faltou algo. Faltou falar de uma experiência de leitura, quer dizer, um tipo de experiência com o texto, quer dizer, com o livro, quer dizer, com o suporte, sei lá... Vamos lá:

Todos que me conhecem sabem que eu li o livro Cien años de soledad de Gabriel García Márquez algumas dezenas de vezes de modo que o decorei, de verdade. Foi através do texto em português que me lancei na aventura que aprener espanhol 'sozinho', o que foi de muita serventia quando cheguei na Colômbia em 2005. Depois disso memorizei também o texto em espanhol de modo que às vezes só para "joder" eu declamava páginas inteiras para meus amigos espanhóis.
Os meus amigos sabem que eu sempre tive uma relação de amor e ódio com o Inglês, o idioma mais fácil do mundo. Estudei durante anos, fazendo corpo mole, me aproveitando de bolsas para estudantes pobres e de algum dinheiro que me sobrava. Depois que me casei, forçei a Sariza a me ensinar e fiz com tal desapego que nunca aprendi nada, nem o regimental "I love you". Mas algo mudou, nos últimos meses.
Quando vim para a fronteira me matriculei num curso de Inglês e estou aprendendo, me dedicando - bem, isso foi depois de me fuder na primeira avaliação, mas já é algo. No último final de semana, consegui na Net uma cópia de Cien años de soledad em Inglês e aí as teorias da leitura foram para a puta que pariu. O problema é que estou "lendo" o texto. Estou no segundo capítulo agora e me dei conta que essa experiência raia a loucura porque não sei se leio ou recordo.

Ah, lembrei a palavra - com o resto da frase - que o professor Vilalta disse, para minha completa insatisfação: "a leitura, amigo, é o reino do imponderável".

Senhores teóricos, sou todo ouvidos...