sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Dorme com Trieste



Trieste, disseram a ela, era o nome de uma cidade em um outro país. Mas isso não foi suficiente para nada. Ela continuava sem respostas. Sua mãe morrera num posto policial de fronteira, e ela, Trieste, viveu até hoje acostumada a compartilhar o nome com uma cidade do outro lado do mundo.
Sempre sentiu uma atração nublada por lugares de passagens: hospitais, pontos de ônibus; mas se encontrou mesmo quando foi, pela primeira vez, em uma rodoviária. Isso era um lugar impactante: um lugar de partidas e chegadas, fronteira interna do território habitado. Um dia soube que os aeroportos eram significativos, que deles se partia para mais longe. Mas já era velha, a insônia lhe destemperava o humor.
Já então cultivava o seu mal hábito. O único lugar onde podia dormir era no banheiro da rodoviária, o único lugar onde se poder ter um sono tranquilo, que porra! Esse era o seu argumento. Mas a verdade só ela sabia e nada dizia.
O certo é que ao menos três vezes por semana, ela, Trieste, metia um travesseiro numa mochila. Entrava no cubículo 11 do banheiro da rodoviária. Se sentava na privada, se recostava no travesseiro e dormia, dormia até à noitinha.. Só acordava com o ônibus das oito horas, o interestadual, que despejava passageiros que vinham de lugares distantes. Ela ouvia o retorcer de seus ventres - se sentia próxima daqueles que ela considera os "seus," com um sentimento de possesão familiar.
Ela simulava briguinhas de irmãs. Como se raiasse com irmãs pegajosas, saia de mal humor do cubículo público, assustava senhoras de pudor, que se trancavam até a próxima cidade. Ia  embora xingando, que porra que a gente não mais dormir - contente, contudo, por haver incidido sobre o fluxo orgânico de suas parentes próximas.
Sempre ficava com ilusões, que será que elas se lembrarão de mim se um dia voltarem? Será que vão falar comigo quando passarem de novo? Será que já somos próximas? Ai, ai. Ai, ai. Pobre mulher, alguns dizem por aí, mas eu lhe sou favorável. Por isso passei a defendê-la disso tudo, quis compreendê-la, quis saber. Até que um dia, resolvi fazer o mesmo, dormi um sono ali, no cubículo 12. Dormi bem, voltei; na outra semana de novo. Aí eu trouxe um edredon vermelho, aí trouxe um pequeno armário com minhas coisas, aí faz cinco anos que durmo aqui.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

No semáforo



Hoje estava disposto, em algum lugar do céu, que eu ia encontrar um grande poema; arrebatador. Por isso, comprei logo cedo uma coletânea de poemas de todo o mundo. Ao chegar no semáforo mais próximo de minha casa, abri o livro e comecei a ler um poema épico Hutu de autor desconhecido.
Os minutos trupicaram uns nos outros.
(....)
Quando terminei de ler o texto levantei a cabeça e havia uma multidão ao redor do carro - assim igual galinhas vigiando cobra, com pescoço cumprido. Uma fila de carros buzinando e um policial, suado, apontadando um dedão duro em minha direção. De repente alguns macho intrépidos começaram a balançar o carro, querendo me tirar lá de dentro. Aí que entendi que a polícia estava ali para proteger meu direito constitucional à leitura, um defensor da cultura, portanto, o polícia. Mas, amargurado, pensei "Que bosta!" pensei, "não se pode ler mais nessa vida" gritei enfurecido para os muitos que queriam sair no braço comigo. Liguei o carro e fui procurar outro semáforo.