domingo, 27 de setembro de 2009

Transterror: ida e volta. P.S. Uma história de amor


O professor Dadinho, conhecido como Cássio sei la do quê, fez comigo, no ano de 2008, uma viagem de 52 horas entre Ituiutaba, Minas Gerais, e Rio Branco, Acre. Como o ônibus havia saído de São Paulo, houve um heroíco senhor que viajou 58 horas. Fomos conduzidos por uma empresa chamada Rotas, lindo nome esse. Contudo, nada como uma viagem de dezoitos horas num ônibus da Transbrasiliana para ver o quanto aquela viagem foi pouco loquaz.
No último dia 22 de setembro, às 13h estava a procurar uma passagem para Goiânia. Fui a outras duas empresas, mas um delas, a Medianeira, foi alvo de minha censura imediata, havia sofrido uma irritação intensa na última vez que fui transportado ali. A concorrência mais digna, a Satélite Norte, uma empresa de qualidade superior, também foi evitada pela diferença no preço, 6 reais, e porque só vende à vista. Não sei o que passou pela minha cabeça, optei pela Transbrasiliana. Na verdade, sei. Da última vez que fui à Goiânia ocupei o acento 29 de um carro desta empresa, que faz a linha Goiânia-São Luiz e as condições eram aceitáveis. Isso me enganou, ledo engano. Descobri isso quando entrei no ônibus, no dia seguinte.
Como disse meu amigo Wesley, cisterneiro é um trabalhador viril, que suporta altas temperaturas cavando terra à dentro. Quando entrei no ônibus, senti um tufo de mal-cheiro, mistura de hormônio de macho, suor curtido por fugos bravos, mal hálito de cú e cheio de queijo fresco. Tudo centrifugado no calor do TO e nos duzentos quilômetros que o carro já havia percorrido. Troquei de lugar várias vezes porque os cintos de segurança, de todos os bancos, estavam sujos, pisados, com uma delicada e poética crosta de chiclete de menta, saliva de catarro maduro e poeira do norte. Falei para o motorista "este ônibus está fedendo". Ele disse "fedendo nada" e me olhou pesado e como que disse com os olhos "macho que é macho não reclama dessas coisas". Tomei um sonrisal e suportei estoíco.
Só fui entender o porque uma empresa tão conhecida e reconhecida por muitos não faz nenhuma questão de cuidar de seus carros e de respeitar as sensibilizadas de seus passageiros quando retornei de Goiânia, o que fiz hoje. É que procurando um hotel para pernoitar em Gurupi-TO fui conduzido por uma série de circunstâncias ao Transhotel, o totalmente excelente hotel da Transbrasiliana. Totalmente mesmo. O prédio é velho, mas os quartos demonstram um glamour anacrônico. Ficamos num quarto para três pessoas onde havia dois banheiros: apenas um deles funcionava. O que descobri quando, já nú, fui ligar a deliciosa água que não caiu porque o cano estava interditado por uma sacola velha. Contudo, quando senti sede tudo fez sentido. Introduzido num pátio gigante vi, espantado, duas piscinas lindas, redondas, sujas e verdes como um pedaço de queijo esquecido no fundo da geladeira. Fiquei espantado. Não consegui entender porque daquilo. Porque uma estrutura daquela entregue à deteriorização. Pensei, coçando minha barriga, durante algumas horas, espalhado sobre um lençol verde e olhando para o teto forado pelo símbolo da empresa.
Acredito que a Transbrasiliana, na verdade, sobreviveu a si mesma. Ela faz parte de um tempo heróico, aquele da expansão do Brasil sobre a Amazônia, quando a Belém-Brasília foi construída, quando o sonho dourado de desbravar ainda movia machos de todo o país. Sua cultura organizacional também, seus hotéis, que já foram os mais luxuosos, os mais importantes de várias cidades da BR-153, agora não passam da última opção - como todo o resto da empresa - de uns poucos viajantes. Ou seja, ela parece ser uma carga pesada para seus gestores, algo de que eles não gostam, parece, como um tio velho que não teve filhos e que, porra, só serve para atrapalhar. Senti, frente àquelas piscinas, que ela vive de passado e, algo muito mais aterrador, da caridade de alguns poucos nostálgicos que ainda a respeitam. O problema é que estes, os seus heróicos passageiros dos tempos dourados, estão morendo como mosquitos. A velhice, como diria Drummond, os espalhou por uma vasta rede de cemitérios do interior da Amazônia. Meu avô, por exemplo, morreu há 7 anos. Ele adorava a empresa. Achava lindo seu verde chuva e parava quando passava um Transbrasiliana. Ele podia ficar tranquilo, talvez sentisse, eles sempre estariam ali, passado para lá e para cá, lembrando que ainda faziam partes do mesmo país lugares imensamente distante, então, como Xinguara e Goiânia. Como Itaituba e Rio de Janeiro. Hoje, não sei se alguem sente algo semelhante. Acredito, contudo, que todos que  viajam por esta empresa, jantam ou dormem em seus hotéis, são transportados em seus mal-cheirosos ônibus, mal-tratados por seu motoristas, pensam algo diferente, pensam, meu Deus, até quando ela vai sobreviver com uma indiferença tão grande por seus passageiros, por seus carros e hotéis; com um desprezo tão desbordado com sua própria história.

P.S. Maria entrou no ônibus em Araguaína. Sentou na poltrona 23. Na 24 estava uma senhora com câncer, verde e vestida de mostarda. Dois banco atrás, na 27, vinha um senhor, um macho rude, que penteava o cabelo com  aquelas escovinhas da década de 1970, sabe?. Maria não resistiu. Ela passou, alguns quilômetros depois, para o banco 28.  Ela não pode resistir ao, quem sabe, último exemplar de uma estirpe lendária: os garimpeiros. Lembremos do que disse Sergio Buarque de Bélgica ou Holanda: os aventureiros sempre ganham os melhores prêmios. Cem quilômetros ou três municipios depois eles já estavam falando mole; mais dois municípios e começaram a se pegar. Esperaram a noite chegar e redefiniram os rumos da relação. Fizeram um amor mítico, de ladinho, em exíguas duas poltronas. A senhora da poltrona 24 começou a chorar e eu senti que havia algo de inveja ou lembrança em suas lágrimas, sei lá. 800 quilômetros depois o garimpeiro desceu, virou e deu um tchau com a mão. Sumiu na noite. Maria virou para o lado e dormiu. Eu dormi, o ônibus dormiu. Acordei com o motorista me chamando, "ei?". De novo me deu com os olhos uma lição sobre ser homem. Levantei meio atordoado. Fiquei pensando: macho é macho mesmo: dirige ônibus verde, trepa em público e não reclama de nada. Me lembrei de meu avô, da viagem que fiz, há um ano, na Rotas, do senhor das 58 horas, sumi no tumulto de parentes se abrançando. De lembranças se reencontrando.

PS II. Há dez dias enviei essa crônica para o SAC da referida empresa. Nada de resposta até agora.

sábado, 19 de setembro de 2009

(In)cômoda II


Acreditem ou não,

o senhor Professor Rafael ficará sabendo em primeira mão o que havia acontecido com a minha cômoda. Espero que o senhor e demais professores acreditem, pois eu estou até agora dizendo "Nó!!!!!!!!!!"
A cidade de Wanderlância fica a 54 quilômentros e 100 metros de Araguaína, de trevo a trevo. No rumo norte. De acordo com o IBGE,  a cidade possui 9500 e poucos habitantes e se destaca pelo ecoturismo; nos seus arredores existem pelo menos cinquenta cachoeirras, lindas. A cidade é antiga e recebeu esse nome por causa dos Wanderley, família lendária que tinha a não menos importante função histórica de mandar em tudo por aqui. Parece que aqueles românticos coróneis arrogavam primazia em tudo, na virgindade das moças, nas comidas coletivas, nos favores públicos, na memória do povo, no oficios religiosos. Por exemplo, nos dias de procissão o santo primeiro abençoava as suas casas, depois do resto dos mortais.  Eu não conheço a cidade. Mas a minha cômoda sim; ela tinha ido parar lá.
Ninguém sabe porque, nem como, nem com quem. Mas desconfio que a tradição histórica da primazia fez os entregadores do Armazém Paraíba levarem meu bem à cidade para a benção dos coróneis; quando chegaram aqui na última sexta fiz eles saberem de minha gratidão por isso. Ela ficou largada num canto da loja da rede Paraíba de lá, sozinha. A coitada! O pior é que ela quase foi (re)vendida e entregue para o Dr. Filipe Wanderley, médico e descendente de coróneis. Depois de olhar a peça, quem sabe conferindo direito à sua existência nesse mundo que não é nada sem o seu nome, ele desistiu. Dizem que disse "isso é coisa de pobre" e saiu da loja. Foi assim que a encontraram, empobrecida, rejeitada. E só o fizerem porque o gerente da loja ligou em Araguaína devolvendo a peça porque ninguém queria "aquela bosta".

Att


Professor Dernival

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

(In)cômoda


Professor Rafael,


quando retornei de Goiânia há justos 10 dias me decidi pela comodidade. Andei pela cidade procurando uma cômoda que reunisse duas propriedades fundamentais: boa e barata. Nas próximidades de minha casa, há um quilômetro de onde estou agora, encontrei o Armazem Paraíba. É bom que o senhor saiba que a referida loja mantém, uma do lado da outra, uma casa de móveis novos e uma outra de móveis danificados e de mostruário. Nesta última encontrei uma peça com características similares, com algumas ranhuras, por R$: 272,00. Decidi compar. Afortunadamente, fui obrigado a ir na loja de móveis novos fazer o pagamento. Para minha surpresa, ali estava a mesma cômoda, nova, por R$ 249,00. É bom o senhor saber que na loja de móveis danificados que a mesma empresa mantém, a única forma de pagamento era à vistinha, cash. A cômoda nova era mais barata e ainda podia ser paga em suaves parcelas e com juros módicos de 9% ao mês. Falei "Nó, vou comprar a nova!" Comprei, paguei, fui embora esperando a comodidade de poder guardar minhas peças de vestuário íntimo em um móvel novo, com aquele cheirinho. Isso fará uma semana amanhã e a minha cômoda não foi entregue. Fui à loja hoje - com a cópia da nota fiscal  - e eles não sabem onde ela está, nem com quem, nem têm a mais puta idéia do que aconteceu.

Att

Dernival

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Ciência animal tropical III e IV



Professor Rafael,

há algum tempo abri um jornal do Pará de 1994 e li:

"Um pescador morreu ontem à noite na Bahia do Guajará, próximo a Belém, asfixiado por uma sardinha. O pescador José João da Silva morreu no Hospital das Clínicas depois de ser levado inconsciente à emergência do referido hospital. O pescador morreu de asfixia provocada por peixe da espécie Sardinops ocellta, conhecida popularmente como sardinha. Os seus companheiros de pescaria disseram à polícia que estavam pescando e as sardinhas começaram a pular sobre o barco. Uma delas teria entrado certeira na cavidade bocal de José João. A autopsia encontrou o peixe bloqueando as vias respiratória superiores do pescador. Os pescadores estavam pescando na piracema". (Jornal O liberado, p. 04, 01 de abril de 1994)

Meu pai que sabe muito de pescarias me disse quando eu lhe contei a notícia, "elas fazem coisa pior." Ele me contou que em Borba, na margem esquerda do rio Madeira, um médico teve que operar um moça às pressas porque ela chegou no postinho "com um sardinha escodida na, como se diz, buceta". Eu olhei para ele com uma cara desconfiada e ele respondeu "é, mas eu vi a chapa." O que me fez pensar: no caso do pescador de Bélem, o que aconteceu foi um ato de resistência das sardinhas contra a opressão imperialsita dos pescadores paraenses: um atentado terrorista. No caso da sardinha da moça, foi suicídio mesmo.

Att

Prof. Dernival

Ciência animal tropical II

E por falar nisso, Prof. Rafael,

o meu avô, José Venâncio, que tinha os colhões um do lado do outro, também se envolveu numa conversa sábia com dois Tapirus terrestris chamados Tomé. O Tapir ou anta, é um animal sábio e preocupado com seus amigos, contudo, ele é bastante exigente com as ações humanas. Dezenove dias depois de meu nascimento, dois Tapirs, muito amigos, foram, provavelmente, dá um rolé pela mata; no caminho pararam em baixo de um lindo pé de Puçá, cuja flor adocicada é uma paradinha doida para eles. O problema é que meu avô estava sentado numa rede a alguns metros de altura, "esperando".  Quando eles chegaram ele armou a sua velha calibre vinte e disparou. Imediatamente ele ouviu "e aí Tumé, pegou em ti?","Não. E em ti, Tumé?","Nãm". Aliviado, o primeiro dos Tapirus terrestris disse "então vamos, né?".... Meu avô não se convenceu, recarregou a espingarda e disparou de novo, errou mais uma vez. Aí virou chacota: "vai ser ruim de tiro assim no inferno!"Isso foi a última coisa que o senhor José Venâncio, pai de 11 filhos e crente da Assembléia de Deus, ouviu na noite do dia 23 de abril de 1979, às vinte horas e quarenta e cinco minutos.
Att,

Professor Dernival

Ciência animal tropical


Veja o senhor Professor Rafael,

o que é a (cons)ciência animal tropical. Um grande amigo nosso estava no arredores do Tocantins. Ele caçava Tolypentis tricinctus, o vulgo Tatu; e como o cara é macho pra caralho sempre fazia isso às unhadas. Naquele dia de infortúnio, porém, levava um facão. Avistado um mexe que mexe no fundo de um descampado, acelerou o passo. Atacou preciso. Pegou o tatuzinho  pela calda e ia passar o bicho no facão. Neste momento de hombria desatada, suas narinas ofegantes, ficaram frente a frente com o animal que virou e disse em português muito correto: "Num cridito, num cridito, num cridito que cê vai fazê isso cum Gonçalim". O Nilson percebeu um certo amargor fatalista na voz saudável do Tatu. Isso o senhor sabe, não acontece todo dia. Mas ele nunca mais pisou um centímetro que fosse dentro de qualquer coisa verde, o que inclui grama de plástico. Por exemplo, quando viajou pela BR 153 no mês de julho e se viu obrigado a aliviar sua virilidade da pressão da urina, parou o carro e mijou loucamente no asfalto ardente, sentindo a evaporação de seus hormônios. Não sei o que explica atitude tão drástica quanto às coisas verdes, saberá o senhor professor Rafael?


Att

Professor Dernival

domingo, 13 de setembro de 2009

Primeiras notícias



Professor Rafael,


aqui é “trevas”. Mas mesmo as trevas têm seus encantos. A cidade é uma urbe de fronteira, eternamente por acabar, tudo meio provisório (talvez para sempre provisório). O mais desagradável ao senhor, porém, seria o calor. Aqui é quente pra caralho - mas a Consul vende uns aparelhos de ar condicionado ótimos a preços módicos. Eu, por minha parte, sou macho e isso implica agüentar o calor e os insetos - milhares deles, como pontos negros, moleculas zuzunantes no ar da manhã (e da tarde e da noite). Não comprei um condicionador de ar e entrego meu sangue aos insetos como se fosse uma purificação de minha linhagem. O custo de vida é caro, muito caro e até agora não foi possível encontrar um buteco trevas, um chopp doido ou um café expresso espesso. Nada dos prazeres burgueses; os prazeres aqui são mais viris: caça à onça, fuga da polícia, cachaça curtida em tranças de cascável. Coisas de machos, sabe? “¿Qué a usted le parece, Profesor Rafael?”

Att,
Professor Dernival

sábado, 12 de setembro de 2009

Tiros na pecuária




Professor Rafael,



aqui a vida vai animada. No último final de semana, professor Rafael, eu e a Sariza resolvemos fazer uma viagem ao Maranhão do Sul, precisamente à cidade de Imperatriz, como dizem lá, Portal da Amazônia. Mas que faz parte da zona geográfica de transição entre Cerrado e Floresta Chuvosa; do ponto de vista sociocultural é uma sociedade de fronteira, criolla. O motivo da viagem foi que o Prof. Degson foi rever a namorada; havia também um evento cultural de suma importância na região: um show de Bruno e Marrone.

Seria bom que o senhor soubesse que o rio Tocantins margeia a cidade e que ao chegar, no sábado, fomos levados à praia - na verdade um barranco, íngreme, que os “nativos”, na falta de algo melhor dizem ser a melhor praia da Amazônia Legal. Um mentira, obviamente. Ali ficamos nos banhando e comendo um peixe frito; havia skol de ótima qualidade. Á noite fomos comer uma carne seca, um camarão. Dormimos tarde, ansiosos pelo dia seguinte e por tudo que aconteceria.

O problema realmente foi que esse “tudo”, que agora sabemos "trevas", então parecia promissor. O senhor tem que concordar que um show do Bruno e Marrone é zuação de primeira. Isso de dormir na praça pensando nela, profundo isso. O almoço foi na casa da namorada do Prof. Degson. À tarde ficamos no hotel, tomamos açaí na tigela e comemos outras iguarias nativas. Às 21h tudo começou.

Demoramos três horas para chegar do centro de Imperatriz ao parque de exposição agropecuário. Um engarrafamento digno do noticiário paulista. Chegamos e fomos logos conduzidos, como gado (as elites daqui têm uma mania de tratar os pobres como gado; fiquei cantando Admirável Gado Novo o tempo todo). Empurrados, amassados, manuseados, enfim, entramos na GRANDE ARENA DE SHOWS DA EXPOIMP. Ali o monopólio era da Schin e essa cerveja custava três reais cada latinha. Mas a felicidade de ver e participar de tão grandioso evento de cultura me animou e eu bebi duas latinhas, depois fui de pinga mesmo... O Show foi cansativo e depois fomos procurar um lugar para comer algo, uma picanha. uma buchada, um chambari com puba. O bar escolhido chamava-se Texana, o “point” da EXPOIMP: ali tinha música ao vivo e os brancos ricos estavam comendo gulosamente suculosos pedaços de carne seca, de picanha, camarão, a delícia de um buchada e o explendor de um chambari, enfim.... Estavamos na ruazinha enfrente ao bar, no meio da multidão.

O tumulto era tamanho que estávamos desistindo, não havia lugar e como o bar oferecia música ao vivo havia uma pequena multidão aproveitando a música grátis. Ouvimos que o dono do bar tinha que fechar o estabelecimento ou parar a música; afinal muito macho junto acaba em confusão. Ele ficou indignado e começou a xingar com o microfone em mãos os policiais que estavam ali dispostos a fazê-lo a fechar ou parar a música. Íamos saindo quando o tenente que dera a ordem puxou o referido comerciante de bebidas, picanha e buchada pela camisa e o derrubou do pequeno palco. Tudo que se viu foi um monte de policiais sobre o homem, como se fossem adolescentes brincando de "montinho"; a cavalaria invadiu o bar e um rapaz deu um grito! Um cavalo pisou no pé dele. Ninguém sabe quem começou, mas como aqui só tem macho, um deles, arremessou um copo de uísque num dos homens da cavalaria. Foi uma chuva de copos. O cavalo levantou as patas da frente, e o policial ficou, um segundo, como um monumento de um antigo regime derrubado pela revolução, vítima de copos e escárnio. O cavalo era branco e eu vi que era mangalarga, machador, o que poderia ter me lembrado o cavalo de Napoleão. Mas começou o tiroteio e tive que sair "vuado"....
Eu e a Sariza voltamos para o hotel, trepamos entusiasticamente e dormimos. O sono foi tranqüilo, dormi como uma criança. Nada como um tiroteio para fazer um macho dormir bem. Ontem voltamos para Araguaína. O professor Degson contínua lá, em algum lugar....



Att.



Professor Dernival

O corte

Professor Rafael,



não pense que a vida aqui nesta terra de areia é apenas calor; existem outras aventuras. Um ato cotidiano como cortar o cabelo pode se tornar uma pequena aventura e levar você a conhecer alguns personagens muito interessantes. Veja o senhor, hoje acordei com vontade de cortar o cabelo e com essa intenção fui ao centro da cidade. No primeiro salão onde entrei cobravam nada menos que vinte reais. Decidi procurar preços mais populares; ao lado de uma praça encontrei vários salãozinhos. Entrei no primeiro e um senhor, negro, de um metro e noventa me recebeu: cabelos brancos e uma barba feita com um precisão cirúrgica. Perguntei quanto era o corte: era sete reais. Falei que pagava cinco; ele repetiu seco: "É sete reais". Suas palavras possuíam uma convicção, algo pontual, como se desse uma ordem; me decidi a pagar. Sentei-me numa cadeira fabricada em 1962, no centro de São Paulo. Conversa vai, conversar vem; eu tentando ser agradável, perguntei se ele era de Araguaína, "Sim, nascido e criado aqui"; perguntei como era a vida aqui, "Boa", qual o bairro mais violento da cidade, "Onde eu moro, Araguaína sul", e assim foi... Perguntei se roubavam muitos carros aqui, "Muitos, todo dia roba".


Neste intervalo de conversa nada promissora, ele tinha cortado o cabelo e estava preparando a “gillete” para fazer a minha barba. Falar de carro e de roubo de carro abriu o coração dele. Me disse com a navalha não, vindo perigosamente no rumo de minha garganta, "Sabe, eu matei um cara!". Não sei o que aconteceu, mas a cadeira ficou pequena e tive que mexer e virar para conseguir me manter nela."Sabe, eu comprei um carro uma vez", disse isso raspando a maça de meu rosto, "E nem uma semana um cara entrou na minha casa", desceu a lâmina no rumo da garganta, raspando com vigor a minha pele, "mas eu acordei a tempo e ele pulou o muro. Aí eu fui na casa do meu irmão e peguei a 44 dele", perguntei se era a espingarda 44, "é", continuou raspando, "disse para mim mesmo que se esse vagabundo entrasse de novo na minha casa de lá ele não saia". É bom deixar claro que o meu desconforto na cadeira aumentava, parece que ela foi diminuindo de tamanho à medida que conversávamos, "Quando a gente tem que matar, mata mesmo, fica aquila na cabeça. Esperei umas três noite com a 44 e uma noite lá vem o vagabundo" nisso ele estava raspando a região daquela artéria vital (morta!) da garganta, o senhor lembrará professor Rafael, "Esperei ele pular o muro" ele continuou, "e atirei. Caiu estribuchando no quintal, ficou lá". Pensa num homem que riu sem graça: eu! O que a gente diz numa hora dessas, professor Rafael? Respirei aliviado, ele havia terminado. Queria mostrar o trabalho no espelho, eu disse "não, precisa disso não". Me levantei o mais discreto possível, paguei, limpei o pescoço - limpei meu pescoço com muito carinho, professor Rafael - e falei olhando para o chão, "então até mais, mês que vem eu volto....."




Att




Professor Dernival