sábado, 18 de dezembro de 2010

A única chance


Foi numa manhã como as outras. Alguns viram uma enorme tenda e não parecia a tenda de um circo, com palhaços e leões. Os mais intrépidos se atreveram a se aproximar. E foram recebidos por homens de cartola, com gestos mecânicos, sorridentes, "que entrem todos" diziam. E como era domingo e não tinham nada que fazer, foram entrando; e se deram conta do que era afinal, "aí, meu deus!"
Começaram a olhar as prateleira gigantes, com dúzias de produtos do bom viver. Começaram por se apoderar de carrinhos e enchê-los a desbordar; logo viram que os produtos não eram repostos e voltaram e pegaram mais. Foi aí que surgiu o primeiro problema. A disputa pela última unidade de sardinha foi aplacada por alguém de terno amarelo, "que se acalmem, que há para todos!" Mas não havia, alguns logo imaginaram.
Aqueles que podiam se atiravam às prateleiras como animais no cio, como se fosse sua última chance. Como se fossem morrer. Uns mais desenfreados que os outros, começaram a dar lance pelos carrinhos cheios, que se apresaram em vender. Logo vendiam os carrinhos cheios pelo dobro, que logo eram vendidos pelos quádruplo.
Nesse clima desatado, sem que ninguém se desse conta, a noite chegou. Todos foram empurrados delicadamente para fora, claro depois de pagar suas compras. "Amanhã, às seis, reabriremos" disse um homem, com ar sonhador de um domador de feras.
Alguns resolveram esperar até o dia seguinte. Mas na conversa, no papo de macho que "comprei mais que os demais, comprei tudo" o sono chegou e dormiram. Cheios de esperanças.
Ao acordar um imenso vazios os preencheu. A tenda havia desaparecido, e na cidade, quente todo o ano,
começou a cair pequenos flocos de gelo, gelo solar, que levou todos a uma imensa vontade chorar.
Até que se lembraram. Alguns correram para casa, se postaram frentes a seus armários e dispensas, armados até os dentes, tentando proteger da turba que já se formava o que lhes restava.
A turba com sua iniquidade de sempre foi entrando de casa em casa, violando dispensas, e levando os produtos  para a rua, onde eles eram estripados e espargidos sobre todos, num um carnaval de desprezo, como se aqueles que não puderam comprar se vingassem dos outros que tiveram, por um dia, como única vantagem na vida, o poder de comprar o que os demais nunca tinham visto naquela cidade de beira de Br,  preços módicos.

sábado, 13 de novembro de 2010

O dia que o mar não voltou

Um sr. de repente olhou o relógio, "Meio dia" ele disse. Olhou para o deserto em frente a cidade, que estava lá desde há muitos séculos. Uma geografia híbrida! De manhã, um deserto. Meio dia, o mar começava a avançar, e duas horas depois, a cidade era na beira do mar. Todo dia, era assim! Mas era meio dia e vinte e nada do mar. As pessoas começaram  a parar e olhar, esperar... olhavam-se como que perguntando onde estava o mar, que todos dias voltava. Mas que droga é essa? Vinte minutos depois a orla estava repleta de gente, a televisão, os jornais, etc. Surgiu um helicóptero, e voou em direção ao mar. Passou alguns minutos e o helicóptero voltou. Voo até onde pode, mas nada do mar. As pessoas olhavam e como a perguntarem-se que bosta é, quem seremos nós sem ele, sem o mar.
O mar não voltava, não voltou. Nunca mais.

O bitrem e o jabuti

Um bitrem é um conjunto de semi-reboque, que pode chegar a 74 toneladas. Isso é 1850  vezes mais pesado que um jabuti. Por outro lado, o animal aí anda a mais ou menos 600 metros por hora.
O bitrem pode atingir nos declives da BR 153, nada menos que 180 km/horas.
Sabendo desses fatos técnicos, relação entre tamanhos e velocidade, fica a pergunta, o que leva um jabuti a atravessar a estrada num aclive, às 11 da manhã.

Eu estava, na última quinta-feira, indo a Imperatriz, e faltando uns vinte quilomentros, vi uma cena única: um jabuti atravessando a pista, na maior calma do mundo; os caminhões passando vrummm!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! vrumm!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Pra lá e pra cá vrummmmmmmmmmmm!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Não pude me conter. Parei o carro no acostamento. Fiquei olhando, o jabuti levantar uma pata, a outra (vrummmmmmmmm!!!!!!! vrummmmmmmmm!!!!!!!!!!!!!!!!!!) Sem olhar para os lados (vrummmmmmm!!!!!!!!!!!!!!! vrummmmmmmmm!!!!!!!!!!!!!) Atravessou a pista, se embrelhou no capim. (vrummmmmmmmm!!!!!!!!!!!!!! vrummmmmmmmm!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!)

Liguei o carro e fui embora!

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A idade da razão na fronteira da cultura

Sempre

me interessou o individualismo de fronteira; do chucro, do macho e da fêmea rude, que se sente o parâmetro da experiência do mundo. Que age como se o mundo fosse isso mesmo, "o que o meu olhar alcança". De gente que nasceu antes das sociedades onde vivem. Eu por exemplo nasci três anos antes que a cidade onde nasci.

Esse individualismo, segundo o sociologo francês Louis Dumont é do individuo-fora-do-mundo, que se sente a parte e nesse caso anterior à sociedade política. Isso é a fronteira....

Esse individualismo é diferente do que aquele pregado pelo mundo burguês - o que Dumont chama de o indíviduo-dentro-do-mundo. Mas os dois no contexto de fronteira se entremesclaram, de modo profundo, nos últimos anos.

Meu pai é um desses homens de fronteiras e ele votou no Montanha porque disse que o Lula tirou toda a capacidade individual das pessoas: ninguém mais faz nada, o governo é quem faz. Mas aí existe um equívoco sobre o que é a comunidade política.

Na verdade, nós que alcançamos a idade da razão na fronteira, quando do neoliberalismo, apoiamos o FHC. Isso nos parecia bom (afinal para nós nunca houve sociedade, só individuos; no que a inglesa aquela nos copiou).

Um erro que só foi corrigido pelo governo do barbudo esse (meu pai disse que não gosta do Lula, diz que aquela barba não é coisa de macho). Lula nos inseriu, levou-nos para a comunidade política brasileira. Nos disse que a nação não é coisa de ação de cada qual, mas sim a ação de todos em prol de um objetivo comum. Enfim, que sem projeto não país, nem outra porra qualquer nesse nosso mundo.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O macho ibérico

Sabem, o macho ibérico é uma instituição trágica: os espanhóis ainda são os europeus que mais assassinam sua esposas, amanntes, namoradas, namorados, etc. Mas existem alguns momentos menos trágicos, é claro.
É impressionante, para um filho da fronteira, curtido em narrativas de machões, putas e tiroteios em busca de glória e bamburro, chegar numa das cidades mais importantes da Europa e dar de cara, na Calle Montera, com um buquê de putas boas vindas de toda parte. Na esquina com a  Gran Vía, existe um restaurante. Ali ia muitas vezes pastorear minha insônia e ver as meninas desfilarem sua glória.
Muitas delas eram do Leste europeu. Isso fazia minha imaginação aflorar, dominada que ela estava pelo cinema em lata e pela literatura russa. Mas nunca tive a coragem de comprar sexo de uma eslava pura. Sempre tive uma questão em mente: o que se fala para uma puta? Como se aborda a criatura sem desumanizá-la. A professora Sariza me convenceu um dia, que tive a feliz sorte de perguntá-la, que não havia como comprar sexo e não desumanizar. Devia-se chegar e ser direto: "Cuánto para joder com usted, señorita?" Isso era o que deveria ser dito; isso elas ouviam. Fiquei pasmo - nada do romantismo das narrativas da fronteiras, do amor louco entre putas e machões, que se apaixonam, fogem por estradas viscinais e alcançam o louvor público da memória épica. Essas aqui, Jú, cortou, a professora Sariza, são putas industrializadas.... pelo tráfico humano.
Mas a vida imita a narrativa, quer dizer. Um dia, nem imagino em que data, fomos obrigados a acordar muito cedo; íamos sei lá pra onde e saímos do Metrô na Gran Vía quanto o sol subia entre os edifícios. Vimos um cena digna de El Cid, o grande pai do machismo ibérico. Um senhor de uns oitenta e tantos anos havia contratado os serviços de uma puta linda, que sem roupa quase, caminhava, muito constrangida pelo visto, braços cruzados, pela rua, esperando o seu cliente superar os degraus, as calçadas. Ele com a lentidão de quem não tem mais nenhuma pressa na vida. Ela com a pressa de uma linha de montagem. 
Ficamos olhando, paramos para ver para que lado iam. Desceram para a Plaza de España. Lembrei que ali, naquela Plaza, há uma estátua do Quijote. Perguntei à professora Sariza: "O que eles vão fazer? Ela vai matá-lo". "É melhor morrer assim" respondeu ela, sem piedade. O pior é que ele não virou narrativa, pensei; ninguém contou seus méritos de macho de última volta. Ninguém sabe seu nome. Um autêntico - o último talvez -, dos machos ibéricos. Segui meu caminho.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Por um BR

Podem existir muitas estradas federais no Brasil, as BRs; mas só existe uma que todos chamamos a BR. É isso mesmo, a 153. A Bélem-Brasília, inaugurada com uma viagem entre a capital do Pará e o Rio, então capital federal, uma viagem de Fusca, em 1950 e alguma coisa. Imaginem, uma viagem de Fusca, 3000 kilometros, imaginem...
Mas hoje a BR é antes de tudo uma jornada, um rito de passagem; para ser homem, para ser macho mesmo, é preciso ter dirigido ali, ao menos uma vez. Isso é a fronteira, já não são cavalos; agora são carros, caminhões. A disputa à ferro e fogo, por um espaço, continua... Amanhã continuaremos

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Qualíngua?

Às vezes fico pensando que eu falo outra língua. Que o máximo que fiz foi aprender a escrever - a estrutura toda ficou ligada ao mundo real, quer dizer: oral. A um mundo onde a língua é, de modo essencial, poética - que não permite a tradução. A transcriação. Onde falar não quer dizer explicar, que as palavras se associam pelo ritmo e não pela lógica da coerência nominal. Os texto que envio, tímido, ao corretor voltam denotativo: sem conotações. Não me permitem escrever pela sonoridade. Digo: isso vale porque foi dito e não porque significa algo. Não posso me perder, me deixar levar pelos labirintos, que porra!, querem que eu seja claro, objetivo. Mas como: se eu nem sei mais que significados atribuir às palavras; devia ser permito ouvir uma conversar como se ouve música. Devia ser permitido inventar, à todo momento, significados novos. Que ninguém se preocupe: vamos nos entender como um estrangeiro entende em terra dos outros. Afinal, somos isso mesmo: estrangeiros do mundo real. Nosso verdadeiro mundo é a palavra. A única prova de que existimos, disse um poeta.

Claro às vezes isso pode ser trágico: dou um exemplo. Há duas semanas um cidadão da fronteira, de Marabá, Jarimar, disseram esse era o seu nome. Jarimar estava abrindo a porta do carro quando ouviu "não disse que ias me pagar?" O outro sacou algo - uma gramática, pensaram os errantes fugitivos do sol. Inclusive Jarimar. Mas era um pistola ".40" que foi disparada 4 vezes. Contaram que a última coisa que Jarimar disse foi "que porra de pistoleiro esse? Que fala  'ias me pagar'" e morreu.

Nessa mesma viagem: quando pisei na margem paraense do Rio Araguaia senti que o âmbito do mundo, quer dizer das palavras mundava, ganhava outra densidade. O motorista da Van olhou e informou com um olhar injetado "segurem-se, vai ser legal." Não precisou dizer nada - todos entendemos que iríamos nos aventurar a uns 150 por hora numa das estradas mais perigosos do mundo, quer dizer, do Pará. Íamos guiados pelo vento ouvindo as vozes dos outros sem entender porra nenhuma do que se dizia ao lado pela algazarra de vozes, como um sinfonia, tocavámos e nos ouvíamos. Nisso estávamos quando apareceu uma manada de cavalos no meio da pista e aí sim todos nós entendemos porque todos gritamos "égua! Tudo se fudeu!"

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Un Dlink Dir 300

Para quem não sabe, um Dlink Dir 300 é um roteador wireless. Algo essencial na fronteira, enfim; não pense que o isolamento não provocar cãibras na alegria, provoca, amigo. A fronteira é uma ilha, um ilha que se repete transloucadamente e é preciso criar, não poucas vezes, um elo imaginário, viajando à velocidade de alguns multi bites pelo ciber space. O meu Dlink, por fim, hoje, meio dia, queimou.
Para um leigo isso é algo terrível. Você sabe. Ir numa empresa especializada em reparar coisas ligadas à nanotecnologia é como entrar num câmara egípcia: domina alí uma aura mítica e uma linguagem hieroglífica. Os sacerdortes que militam nessa causa e que vivem na fronteira además dessa manifestação do sagrado se aproveitam do seu poder e são, na maioria das vezes, tachativos: "ih pode jogar fora!" Fui à concorrência: "ah, o patrão não está, só volta depois do carnaval." Decidi comprar um novo: Na primeira loja: "Tem, mas acabou!", na segunda: "Alagou a distribuidora em São Paulo." Só na segunda que vem (ele nem se importou, ao mentir, em lembrar que segunda-feira, nesse país de corno, nem puta mãe trabalha). Terceira loja: "Oh, eu sou o cara da faxina, não sei de nada aqui da frente. Só estou aqui porque a moça que vende foi visitar a família. Sabe, o tio dela morreu. Hoje foi a missa de 7 dias." Ao menos sabe o preço desse Roteador aqui? "Não moço, nem sei o que é isso!." "Bem, ela deve voltar daqui a 2o minutos." Olhei a professora Sariza que assentiu: esperamos. Quando a moça que vende voltou, ela nos despachou com uma frase louca: "Não estão à venda ainda!"
Eu não sabia o que fazer: nunca vi a desrazão tão presente e me acosando com seu nariz carnavalesco. O meu celular tocou e o mágico do templo da nanotecnologia que havia ficado com o Roteador queimado disse:
"Seu equipamente está bem. Ele nunca esteve queimado. Foi apenas um problemas de energia..." Pode vir buscá-lo. Pior: ele não cobrou nada por devolver à vida, aquilo que parecia morto, morto para sempre.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Raízes

"Tá tudo ótimo" foi o que ouvi da karajá Maria do Socorro. A reencontrei hoje. Depois das férias, na "aldeia" ela dizia estar pronta "pra outra". Ela estava com a sua filha, uma karajá, que posso dizer sem nenhuma dúvida é a criança mais linda que já vi. Seu nome é Amanda Karajá.Sua beleza e  força impertinente de Maria do Socorro levam a acreditar que esse povo, que provavelmente viveu nos arredores do Araguaia nos últimos dez mil anos, vai continuar por aqui, pelos próximos dez mil.
O olhar penetrante de Amanda desafia a antropologia dos céticos.
Tudo começou quando um karajá viu um buraco e saiu de dentro do rio para ver o que tinha lá fora. Viram e gostaram, voltaram e contaram para os outros que lá fora era bonito. Alguns decidiram migrar de dentro do rio para suas margens e suas proximidades. Outro ficaram lá, no fundo do rio. Construiram, na parte de fora do rio, aldeias, das quais ainda existe algumas, e começam a se dedicar a nobre arte de viver a sua vida sem incomodar ninguém. Com os seus olhares de povos do rio viram muita coisa: bandeirantes, missionários, expedições, fazendeiros, construtores de estradas, criadores de gado. Gente simples que diziam que os karajá estavam, no século XIX, à beira do fim. E eles aí, nas margens do rio, seguindo a piracema, cultuando e cultivando as águas diaspóricas. Viram o rio ser invadido pelo nego dágua, pelas Nossas Senhoras, pela mitologia do progresso; continuaram olhando o seu rio correr, esperavam as chuvas, a seca, a madioca e a caça. A vida ir e vir, o ciclo do mundo. Todos tranquilos, de boa. Placidamente.

E eu aqui com essa gastrite queimando e como essa pinga que não mitiga minha errância, minha falta de lugar. Perdido na feirinha às 4 da madruga.