sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Os intelecutais e os poetas. A teoria e o grito



Sabe que eu fui visitar a cidade do Babaçu, Babaçulândia, naquele dia. Por que a pergunta?

Saímos de manhã e fui de carona com vários poetas, representantes da Academia Araguainense de Letras Clássicas, gente versada em Latim e outras línguas difíceis. Uma das figuras mais interessantes com quem me encontrei na vida daquele dia foi o poeta Ítalo-tocantinense Angelo, que veio para o Brasil logo depois da II guerra e chegou em Araguaína em 1958. Ele contava que sua viagem foi, à parte um problema de tradução que houve entre ele, seu companheiro e dois cavalos, um passeio. É verdade: ele era um orionita leigo e sua missão era vir até Araguaína ajudar nos trabalhos da congregação. A viagem teve várias escalas, todas tranquilas. Roma/Rio de Janeiro; trocaram de avião e chegaram a Philadélfia, numa das margens do mui mítico, para os europeus daquela época, rio Tocantins. Daí até Babaçulândia a viagem foi realizada num "motor", que é isso mesmo que você imaginou.

"De Babaçulândia, êh, a Araguaína a gente pegamos, eu e meu, êh, companheiro de viagem, dois cavalos, êh, e se fomos para, êh, nosso destino. A viagem duraria um dia, êh, apenas; mas não foi assim, êh. Em algum ponto do caminho, êh, paramos para comer, êh, um pouco de puba, carne seca e rapadura. Descansar, êh."(Entrevista oral gravada em 30/10/2009)

Aí começou a confusão. Os cavalos fugiram e como os dois falavam apenas o italiano, se fuderam. Acostumados a ouvir português, os cavalos se espantaram com aquela língua de pássaros que falavam os dois, e "caparam o gato". Resultado, os dois ficaram horas no meio do sertão, correndo atrás de cavalos e observando tudo com seus imensos olhos de topázio. Cada grito que davam mais para longe iam os animais. Perplexos e perdidos, no meio do Brasil, ou seja, do nada, os irmãos ficaram por horas.Seu Angelo publicou um livro com essas histórias, se você quiser lhe mando um. Deposita 20 reais na minha conta. Não esquece o dinheiro do correio.

Chegamos a Babaçulândia e fomos apresentados aos artistas locais. Um deles, jovem ainda se apresentou "Sou poeta, escritor e trabalho na farmácia." Um outro afirmou "não sou poeta, faço versos pra mim, sou pai desse aí; sou o dono da farmácia". Começamos os trabalhos batentdo mil salvas de palmas para cada frase do prefeito e vereadores e demais autoridades. Falamos de cultura, desenvolvimento sustentável e patrimônio cultural. Ia terminar minha fala com uma frase de efeito sobre o país e sua elites; mas me alonguei e falei da necessidade de preservar a diversidade cultural, não apenas a poesia, mas a cultura das quebradeiras de coco babaçu, e outras manifestações da cultura ribeirinha, que estão ameaçabas pelo alaguamento que será provocado pela Usiana do Estreito. Enfim, já sabe dessas filhadaputagens que fazem os intelectuais.

No almoço comemos uma galinhada deliciosa que me fez pensar que a teoria é inútil e que a vida e a saliva são o que há. Fomos conduzidos para a parte da cidade que ficará submersa dentro de poucos meses, o lugar mais triste do mundo. As casas sendo desmontadas, tijolo a tijolo; as crianças nas portinholas, com o dedo no nariz, olhando para o rio Tocantins, como esperando a água chegar e transformá-las em pequenos corpos inchados: tudo em preto e branco.Talvez tenhamos sido associados aos "homi das multinacionais", que aparacem de vez enquando ali, descrevem as casas e avisam que devem sair, que estão estorvando, seus pobres, o progresso do país. Quando chegamos nas margens do rio, os poetas da farmárcia não aguentaramm, começaram a improvisar versos magníficos sobre o rio, sobre a cidade inundada, sobre a ingerência de multinacionais na tranquilidade de suas vidas, "que porra, e a gente não pode fazer nada. Só poesia."

No período da tarde pedi que repetissem os versos que haviamos ouvido na beira do rio, inútil. Me olharam com dó: "São coisas que saem dá garganta para não saírem dos olhos". Ouvimos outros poetas dali, um deles falando da despersonalização do artista: da perda da identidade provocada pela produção da arte. Falou de Paul Guaguin. De pintores de realidades melhores. Da realidade que vivem hoje e que há alguns anos era inimaginável, do tempo que tudo destrói.

Pensei em teorizar, vi naquilo, na conferência de cultura, nos versos, um grito de dor, uma necessidade imperiosa de dar resposta à inundação da metade da cidade, à perda das roseiras de seus quintais, das mangueiras da infância e do Rio de toda a vida: "Isso aqui vai ficar com dez quilomêtros de largura, uma repressa."  Desisti da teoria, ela é um erro quando a arte explode capaz de romper tantos estancamentos. "Poetas e farmacêuticos de Babaçulândia" disse pra mim mesmo. Linda metáfora sobre a necessidade de aliviar tanta dor em uma cidade inteira.

Durante o retorno, pensei, com Nietzsche: "sem a arte, a vida, que bosta!, é um équivoco". O poeta ítalo-tocantinense, não concordava inteiramente; contou, enquanto olhava pela janela o verde inundado pela chuva, uma fábula católica sobre a esperança; desconcordei dele. Ele e o outro haviam passado o dia todo tentando verder livros; mal olhando a poesia dos farmacêuticos, desconfiados. Olhei nos seus olhos, meio perplexo. Ele não tinha entendido nada, não havia, cinquenta anos depois, alcançado os cavalos.

domingo, 25 de outubro de 2009

Nas trincheiras e sob ataque...


Fronteira é o lugar onde o mundo conhecido como civilizado encontra o mundo natural. As coisas costumam acontecer assim: um processo de expansão frenético por causa de algum interesse particular. A natureza é rapidamente derrotada pela técnica e o homem civilizado domina o território com a sua infantaria de aventureiros. Essa narrativa exemplar, porém, tem sofrido alguns reveses. A natureza, ao contrário de ser derrotada e desaparecer, reorganiza suas forças, começa uma inclemente guerra de guerrilha contra os civilizados. A violência do ataque pode ser medida pelos estereótipos "lá só tem cobra, muriçoca e potó". Sinal da desilusão histórica daqueles que lutaram na infataria e foram expulsos pelas tocaias mais estrategicamente colocadas pelos generais do ecossistema.
Queria dizer que nasci no Pará, sabe, meus pais foram dos primeiros a chegar em Manuel de Freitas, hoje Xinguara. Vivi 17 anos lá, sempre havíamos lutado surdamente contra a guerrilha natural. Mas saíamos facilmente vencedores, um baigon, um foiçe, um adrin. Contudo, no meu retorno para a fronteira há três meses, percebi que algo havia mudado. Percebi uma sanha, uma insistência, um gasto inadequado de materias; isso me cheirou ao ensaio do ataque final, quando nós seremos aniquilados e varridos do território e a mata retomará seu lugar, no centro de Araguaína. E o pior, tive um sonho. Nele vi uma cidade deserta, com corpos espalhados pelas ruas, sem sangue, secando ao sol. Os telhados, negros, forrados de Urubus, que limpariam o terreno enquanto esperavam as chuvas que fariam crescer a céspede, os arbustos e demais elementos que recuperariam o lugar de onde foram desterrados em 1926. Enfim, há duas semanas, acredito, começou o que parece ser o ataque final. Estamos sob ataque cerrado de milhares de famintas muriçocas, que nós sugam o sangue e nos levam a uma morte lenta, durante o sono, por inanição. Há dois dias, o ataque foi estendido para o dia. Os potós, em perfeita sintônia tática, espargem sobres nossas peles um ácidos que a corrói em terceiro grau. Abrindo caminho para as carapanãs. Os cupins devoram os estabelecimentos públicos e em algumas casas, a luta tem sido centímento a centímento. Em nenhum dos casos restou alternativas, os moradores assustados se refugiaram nas trincheiras. O choque térmico provocado pela alternância de sol louco e chuva diluvial mina as estruturas dos edifícios, desestabiliza o alfasto e estraga o humor das pessoas. So faltam as cobras. Mas elas chegarão.... O ataque tem seguido a lógica dos conhecidos esteriótipos."Aí, Meu Deus!" grita um mulher desesperada que corre como louca na Avenida Philadéfia, sob ataque. Alguns se desesperam e saem às ruas, nisso que dá.
O cenário é o seguinte: nestas duas semanas a cidade inteira se tornou uma imensa trincheira, onde todos se escondem, alucinados, esperando o último, o final e decisivo ataque. Alguns fogem rumo ao sul. Os mais machos ficam, se afundam com a cidade. Seus hormônios serão o alimento da natureza recomposta. Símbolo de algo que os civilizados esqueceram, que tem que ser macho para estar aqui.  Começou há alguns instantes um leve tremer de terra, lento, ouço gritos de socorro pelas ruas, alguém grita que tragam soro, que tragam todosoro antiofidico que tenham. "Aí, Meus Deus..."

sábado, 17 de outubro de 2009

Rascunho de um conto: Jú usou uma UZI


Ju não esperou muito tempo, bastou com que lhe arrocheassem os ovos, ele comprou seu primeiro 38. Aproveitou a dispersão falimiar: a morte do avô e a meia-separação dos pais. Ambiente perfeito para alguém conseguir novos objetivos. Conseguiu fazer do caos dos parentes a sua bonança. Foi então, com 12 ou 13 anos que começou a andar armado na ruazinhas da cidade.
Na escola soube que em algum momento e lugar, os homens matavam-se uns aos outros e depois comiam a carne com satisfação; também sabia que fazia parte de sua formação os filmes sobre a paixão de Cristo que via todo natal na Assembléia de Deus. Morte e salvação, já ouviram falar nisso? Ele sempre ouviu a história do menino assassino, sabem?
É assim: "Num bar da Transamazônica, um menino rolava bolas sobre a mesa de cinuca. Chega um adulto e empurra o Zé, o nome dele sempre era algo genérico mesmo, que enfurecido avança sobre o adulto e é afastao de novo na porrado. Chorando, o Zé fala que ele espere, que vai na casa dele busca a espingarda; que espere que ele via morrer agorinha. O adulto ri, todos no buteco riem do menino. Começam o jogo. Passa algo em torno de dez minutos e se ouve um "ei?". Todos olham, o Zé equilibrando uma escopeta caseira. Dispara, parte o peito de seu agressor em três pedaços".  Jú ria sonhador, o olhar perdido em algum ponto do horizonte do belo. Sua mãe sabia que havia algo de místico nesse olhar: era o mesmo de sempre. Fosse em frente à televisão, fosse nos cultos de terça-feira, ele sempre tinha esse apego com a estética da dor e da morte de muitos. Um dia, na rua, ele conseguiu um fotograma de um filme de ação: uns 20 homens sendo metralhados ao mesmo tempo: cada um caindo para um lado, com um misura de espanto perante a morte. O cena foi filmada com uma sub-metralhadora UZI. Aquilo lhe pareceu lindo, e era. Ele decidiu comprar uma. Mas a malvada vida, sabem, o transformou num professor.
Estudou sobre as revoluções e isso reforçou a estética do caos em movimento milimétrico, o belo da destruição. Leu sobre as chusmas vitorianas, a revolução haitiana, sobre a revolta dos moradores contra os humildes ônibus, discutiu o assalto à delegacia no Maranhão e convenceu-me que os populares estavam certos; que tinham que destruir a delegacia, o forum, o hospital municipal e a Igreja como o fizeram  aqui no Pará, há dois anos. Dizia que esperasse, que o mundo ia se fuder rápido: e que ele estaria esperando, como Nero, ao ver o fogo em Roma, a beleza, o belo que muda o mundo em algo melhor. Citava Shakespeare: Um céu tão sujo não se limpa sem uma tempestade." Contudo, ele me contou algo mais interessante. Uns delírios, algo que viveu com um amigo, o professor Rafael, numa cidade de fronteira, há menos de seis meses. Acredito que por isso estejam aqui. O senhor se acalme que eu vou chegou lá.
Me disse que já havia compra a UZI mesmo antes da defesa de doutorado, que estava com ela no dedo, por de baixo da mesa, quando foi arguido, e que por pouco não acabou com aquilo. Mas o que querem saber é sobre a história no bar. Isso nunca aconteceu, foram apenas delírios.

Bem, foi assim:

"Estavam bebendo uma cerveja e chegou uns caras, com um golf branco. Estacionaram o carro ao lado da mesa do dois, do Jú e do professor Rafael. Começaram a fazer graça, foi isso. O carro tinha a suspensão a ar e era controlada por controle-remoto", pode? "Ele foram provocados. Jú estava com um problema: os alunos dele tinha criado um problemão, se recusado a fazer a prova. Ele estava mal. E o caras lá com o negócio, levantavam, baixavam, levantavam de novo. Cego, o Jú arrancou a UZI, e metralhou o carro! Eles so bateram na polícia porque vocês se meteram na história."

Depois do caos, detidamente apreciado pelo olhar sonhador do atirador, ele fugiram ruma à fronteira de Minas. Ninguém mais ouviu falar deles. Nem sei o porque estou aqui? Ele não veio pra cá, não sei dele. Procurem no Tocantins.

O delegado chegou e pegou o depoimento no chão. Ajudou os dois soldados se levantarem e pergutou ao cabo Silva onde estava o cuturno dele. "Ele levou." E como diabo vocês me explicam isso? Um professorzinhoa qualquer bater em dois policiais e um escrivão e fugir assim. Vamos caçar esse miserável.

Notícia de Jornal: O Liberado, 19/10/2009. "Um individuo que dava aulas na faculdade no sul do Pará era na verdade um procurado pela polícia por metralhar um bar em Itumbiara, Goiás. Depois de agredir alguns policiais, ele fugiu. Ninguém sabe para onde."

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O círculo e o sonho: a 140 por hora na Contra-mão


Sei não, sei não: aqui em minha caixinha de surpresas existe uma rua chamada Cônego João Lima. A rua da cidade. Todo o comércio, popular, assaltos, policiamento reforçado. Aluguel caro. Pessoas, carros, buzinas. Um micro-cosmo, mini-cosmo, melhor dizendo. O mais importante é, porém, que ela fica em aclive. Uma subida. 
O meu amigo professor José Mário me disse outro dia, quando andavámos pela refereida avenida, que sempre foi um bom menino, mas depois de cinquenta anos as coisas se relativizam. Ele anda sonhando algo novo. Sonha que está no topo da Cônego, no sentido contrário ao trânsito, com um Caminhão Volvo 12 machas, acelerando. Queimando óleo alto. E que quando tira um pé e finca o outro, acorda. Ele respira aliviado, ainda bem.
Eu, porem, disse a ele: "Isso não pode ficar assim, uma história tão boa". Vamos terminar esse sonho no mundo real.

"De modo que aquele professor pegou, ontém a tarde, dia 15, um Volvo emprestado, acelerou, acelerou, urrou como um animal ferido, e desceu desenfreado, causando pânico, terror, e me mantando de rir, a referida avenida".


Imaginamos toda a cena, até a notícia de Jornal: "Professor da Universidade desceu a Av. Cônego na contra mão, num caminhão Volvo a 140 por hora. Perguntado pelo motivo de tal despropositada atitude, ele disse a nosso repórter ´ai, foi apenas um sonho`".
Mas o Zé não concordou com o final: "Isso de foi apenas um sonho não cola. Péssimo final. Fica um pouco..." "O quê, Zé?" perguntei. Ele olhou em volta, como procurando algo chão, e disse. "Sei não, sei não: vai que isso acaba acontecendo, bem que merecia, né?". Foi quando ouvi um apitaço viking e vi gente saindo para os lados, e o pânico do assalto de um anjo sueco de 500 cavalos  descendo como um trovão a avenida, na contra-mão. Olhei para o Zé, firme, perguntando "mas que satanás é esse?":. Ele disse: "aí oh, aqui a gente nem pode sonhar nada que vem um acaba fazendo."