segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Erráticas

Ultimamente

estou como o personagem do Calvino, que vai de romance em romance... Acabo abandonando a leitura e decido meaventurar nas ruas, nas ondas largas da gíria dos  vendedores de rua, nas estética das putas donzelas, nos lugares sujos, no baixo meretrício, no centro antigo, nodoso da cidade impotente. O lugar da literatura é a Europa, me digo, lá as pessoas não tem mais nada que fazer; acabam escrevendo livros. Como deixar o sabor de um chambarí pelos versos extrangeiros? O vigor de uma panelada, que vem com pelos menos dez histórias de acompanhamento, por um objeto de papel, quadradinho, de um centímento de altura? Como não ficar o dia inteiro zazando no mercado, na feirinha, sentindo os cheiros dos peixes recém abatidos, dos peixes genéricos amestrados em cativeiros; sentindo o sabor dacarne de porco macho, criado no bosteral;  sentido o cheiro das ervas daninhas, daquelas que servem pra amarrar, num saia, um macho: oo cravinho, aa arruda, oo mói d`couve, oo abacaxizinhos, aa buchinha milagrosa, aa alfavaca, aa gengibre penetrante, aa catuaba da boa, aa alfazema da amazônia, aa sacupira; e os óleos, de copaíba,  de pequi - esse um perfume quase profético - , ah, do óleo do babaçu que dizem é todo um macho; como não enlouquecer ao sentir todos os arromas, as cores e os sabores da pubinha - De Carolina, essa aqui; aquela, do Pará, essa outra de Xambioá, essa aí vem dos sem-terras, a outras fui eu mesmo que fiz; como não acabar o dia na pracinha da rodoviária, trombar com os mendigos, tomar uma Chora Rita com eles esfregar os dedos uns nos outros, sentir a nódoa  do lugar. Ah, ouvir suas mentiras de bamburro e fêmeas etéreas, suas frases perfeitas, seu compromisso profundo com a vagabundagem, como não chorar com eles suas mágoas, que injusto o mundo, que um macho acaba sem sua puta.  Como não ficar emocionado ao descer de um Trans, bêbado bosta, um amigo de infância que você não vê há quinze anos?  Como não olhar para a BR e desejar que ela fosse um rio, sim, que por ali passasse cardumes de peixes elétricos; de barcos de imigrantes, que ela fosse a casa do nego d`água, esse sacana que só presta pra ficar virando as canoas de padres. Como não desejar ver a água passando ao invés de viajantes sonambulos que chegam às cinco da manhã e perguntam Que lugar é esse? Uai, é aqui. A fronteira, num sabe não, é? Aqui, o quilombo maior do mundo. Se eu fosse você, de verdade, ficava.

Policial: "Mas que diabo o sr., professor, está fazendo nessa porra de Rodoviária às cinco da manhã? E nessas condições."
Eu: "Uai, Nada!"

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Desejo selvagem



Tarzán num momento complicado
Um dos meus textos preferidos

 não levou à discussão que eu imaginava. Só um comentário. Nele eu havia descrito as ínfulas de superioridade dos brancos sobre os seres da fronteira, negros, indígenas e mestiços de toda ordem.
Porém, surgiram algumas discussões via msn. Uma dela acabou levando à questão da sexualidade, do desejo. Fico impressionado, dizia a meu interlocutor, com o fato de que alguns que aqui chegam logo logo assumem publicamente o projeto de comer todas as mulheres da cidade, num período recorde de um ano. Mas, entenda-se, "comer". "Pra casar busco uma no sul", me dizia um amigo um dia desses. Outro desses recém-chegados, que está trepando em média com quatro mulheres diferentes por semana, tem a mania de, no dia seguinte dizer, "Aqui só tem puta mesmo. Mulher aqui não vale nada! A partir de hoje vou ficar quieto." Não resiste, contudo, e na noite seguinte lá está ele jogando a sua macheza nas ruas da cidade. No dia seguinte, de novo, a mesma ladainha. De dia, culpa; de noite, desejo.
Esses exemplos mostram mais que a formação do ego masculino na fronteira. Mostra a ambivalência de certas relações que foi resolvida, em partes, na minha cabeça, com a leitura do livro de Robert Young, "O desejo colonial: hibridismo em teoria, cultura e raça." Quer dizer: Young afirma que no centro da expansão da discussão racista durante o imperialismo está a culpa inculcada nos europeus -e nos ingleses, sobretudo - pelo desejo ardente de possessão sexual do outro, do negro, do indígena, do indiano. Isso foi um dos motivos que levou, segund ele, a se gastar tanta tinta na tentativa de bloquear o contato sexual interracional. Como a civilização e seu representantes se deixariam levar pelos seus sentimentos mais "impuros", como?
Quanto aos meus amigos aí, do mesmo modos que nos machões ingleses do século XIX, fica a ambivalência e a hipocrisia. Eles tem que civilizar - já que são representantes da expansão do Estado por esses terras -, portanto, o moralismo é um de seus instrumentos. Isso até as dez. Depois  ninguém é de ninguém. A sociedade de fronteira, que criticam tão durante durante o dia, se torna o lugar de formação de suas identidades e experimentos caligulescos. Aqui, acreditam, vão realizar todos os seus desejos. Depois se casarão com uma comportada esposa, e a condenarão a uma vida sem prazer. A matarão aos poucos, a isolarão do mundo; não permitirão que ela saia, temem desde já que ela se infecte (sim esses são os termos que usam) com o vírus do amor louco e da moralidade estapafúrdia.
Mas na fronteira, as coisas sempre são definidas em termos locais, como diria Sahlins. Um terceiro, descobriu, e está perplexo, que havia virado mercadoria barata nas mãos de algumas senhoritas, que elas estavam combinando, quem ia "pegá-lo" durante a semana e quem iria fazê-lo na semana seguinte. Que as suas conquistas eram planejadas e manipuladas, via orkut, msn, celular, twitter, pelas conquistadas. De caçador à caça. Que elas estavam testando o seu sexo; queriam saber se ele é o que diz; e pior: Que algumas não gostaram do resultado. "É bobo" escreveu uma. Outra porém foi mais impiedosa: "Tem o pinto pequeno", postou no twitter.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Um ano

Fez, ontem, um ano que fui ao Acre.

domingo, 29 de novembro de 2009

A chave ligamundos


é claro que você está certo ao dizer que existe uma geografia econômica da cidade; do mesmo do modo existe uma geografia racial. Um territorialização forçada pelos cores e contas bancárias. Nem todos podem ir a todos os lugares. Mas como na fronteira ninguém é de ninguém, as coisas se complicam muito.
Todos vocês conhecem a bicicleta Monark aro/barra circular? Não conhecem? É essa monark que todos conhecemos. O que não sabemos é a verdadeira paixão que muitos a devotam. Pois, antes que qualquer outro, ela foi o veiculo da fronteira; existia inclusive algumas que vinham com um farol acionado pela energia captada no pneu dianteiro por um aparato, na época, de última geração. É muito provável que muitos hilluxianos de hoje, foram, algum dia, bons bicleteiros.
Contudo, o tempo passada e as coisas mudam; as pessoas mudam, os veículos agora são outros, uma S 10, uma Triton. O problema é que a saudade; essa  fica, e finca profundo.
Ontem, à tarde, atrevidamente, andava eu por uma rua por onde não é lícito andar aquele que ganhar menos de um milhão por ano; havia outro atrevido, de bicleta, uma monark, preta, velha; mas que mantinha o glamour de seus para-lamas cromados. Do lado da rua, estava sendo estacionada uma caminhonete branca, que nada nada vale 1000 vezes mais que a calanga véia; o bicicleteiro se assustou com um carro que passou veloz, se desequilibrou. A corrente caiu. O constrangimento era visível, até eu fiquei. O moço sem jeito de recolocar a corrente no lugar, meio bloqueado, eu ai pegar um graveto, quando o dono da Trinton branca desceu, olhou a monark com a profundidade de conhecedor e eu vi toda a sua nostalgia. Ele pegou, com a chave da Trinton, a corrente, recolocou-a sobre a catraca, bateu nas costas do outro e disse "vai lá". Limpou a graxa na calça Zomp e entrou no Praia Doce.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Entrecruzando olhares

Steve Bico,

um dos mais machos daqueles machos que lutaram contra o Apartheid na África do sul, disse uma vez a um juiz africaner: "Por quê vocês insistem em se chamarem "brancos"? São mais rosados que brancos!" O juiz havia lhe perguntado por que ele, que tinha uma tonalidade de pele mais clara, preferia que lhe chamassem de negro. Mas o que pode isso ter com a realidade araguainense de todos os dias? Nada; mas é um modo interessante de começar um texto, não é?
O fato é que, depois de ler isso em algum lugar, nunca mais pude olhar os brancos de outro modo. Para mim, eles são rosados. Corpos rosados, inteligências rosáceas, violentas. Acredito que isso se deve ao fato de que eles, quando expulsos para a fronteira, simulam uma superioridade racial, econômica, cósmica, sei lá mais eu quê; assumem ínfulas de emissários da divina providência que se manifestam de modo mais contundente na misura meio satânica com a qual investem seus rostos quando um mortal desses que vivem aqui - eu, por exemplo - se atreve a olhar nos seus olhos ou é vítima de um destino desafortunado e o seu olhar se cruza com um desses seres que acreditam, de verdade, que são superiores. Isso eu já havia notado, mas não de modo consciente.  Basta olhar, nenhum branco anda pelas ruas sem os seus óculos escuros. Símbolo de distinção social, sim, mas escudo contra os olhares dos pobres, pretos, mestiços, do meu - donosso - olhar esgueirarado, esganado.Anansiano.
Hoje, durante meu almoço, eu fui vítima de meu destino anansiano - você não sabe o que quero dizer? Estava eu comendo quando entrou umas senhoritas brancas, gente do sul, ricas provavelmente; corpos rosados, pensei. Meu olhar, de modo lasso, passeando pelo salão, se cruzou com o olhar azul de uma delas, e a reação foi imediata. Ela contraiu as sobrancelhas, repuxou os lábios e as bochechas, mostrou os dentes, de modo tão agressivo que eu parei com a carne de porco que mastigava esgulepadamente. Firmei o olhar! Ela endureçeu o dela como se raiasse com uma criança. Mas eu começei a rir desenfreadamente, o que a pertubou, ao que parece. Pois tudo que eu vi, em meio a meu espasmo, foi um corpo, caindo a bombordo, uns talheres e prato com beterabas voando a estibordo e uma platéia atônita pela impertinência de minha gargalhada bronca, de macho mestiço da fronteira, que ria com a boca aberta, alto, espantando os calangos que se aqueciam no sol do meio dia.


Ananse estava no mato, sentado sobre uma pedra. Havia terminado de cavar um poço. Mas não queria que a onça bebesse daquela água. Construiu um boneco e o untou com cola. A onça, muito esperta e entrona chegou e gritou com o boneco: "quero água". O boneco, como bom pedaço de panos e capim que era, ficou quieto. a Onça lascou-lhe a mão na orelha. A mão dela ficou pressa. Ela disse que ele a soltasse senão a outra mão "ia comer". Nada. La se foi a outra mão, o pé, o outro pé. A barriga. Toda grudada. Os animais de toda a floresta riam, gargalhavam estouvadamente. Ananse no meio deles.

sábado, 14 de novembro de 2009

E a fronteira, pra quê?


Sebastião Salgado

A fronteira tem mesmo isso de épico, sabe, de tema de aventuras; lugar desbordado, onde ninguém sabe quem é quem, nem por quê, nem como, nem praquê. Onde todos chegaram fugindo - como você mesmo - da puta mãe que os pariu num quartinho sujo de um hotel metropolitano, depois de uma gravidez escondida da familia burguesa; barriga contraída pela sua propensão para a maldade, para os desejos proibidos, para a brutalidade, pelo aprendizado pela dor, para tudo que seus pais também faziam escondido. Ela mesma filha de algum melhor amigo de seu pai, que se mudou para o Acre de repente. Ela que queria vir, que deseja viver num ambiente lodoso, ganhar dinheiro distribuindo o prazer e o consolo a tantos homens sem mulher, sem amor, mãe; o Padre, por exemplo; o pastor nos dias de santa-ceia, depois de ficar bêbado com o vinho da sobra, de tentar sodomia com a esposa e ser recusado com argumentos deuteronômicos. Sua mãe sim, sua mãe sabia. A fronteira não é um lugar de deleite; ela sabia que a dor tem um lugar no olhar desse machos. Queria aurir prazer dessa dor, dessa solidão; ter um lugar no coração deles, ser levada para sempre em suas memórias como aquela puta meiga, que dava de graça de vez em quando, e que cobrava mais barato dos machos machões, daqueles que já tinham batido na polícia tentando levar um tiro na cara e morrer rápido, com glória, e um lugar na memória de outros machos, sabe, esses ela adoraria. Mas ela não veio, se arrumou por lá. E enviou você, quer dizer, o expulsou.
Ela o enviou para cá, pra aprender. Mas você não aguenta, não; está viciadinho nos traços clássicos, pelas curvas perfeitas, pela perspectiva, isso é um bosta, pela sétima arte. Não quer viver sem ar-condicionado, teme os animaizinhos de Deus, as pessoas lhe aborreçem, o café expresso falta; teatro é uma maravilha, vc diz que falta cultura. Quer deixar isso de mão, ir embora; mas não pode, não consegue; ficar longe como? Está viciado! No seu mundo não há nada para contar, suas experiências não tem valor, só interesse. Nem profundidade. Quer mais histórias; que eu lhe conte o que aconteceu com o prefeito eleito de Rio Maria, que explique porque a lei aqui soa a-lheio. Mas eu me calo. Silêncio. Espero que me conte algo, me pague com a mesma moeda. Mas vem você com pensamento retilíneo, que aqui falta a civilização, que as fossas poluem o lençol freático, que os vermes. Será possível conversar com você? Como vou lhe contar nossas histórias se você só consegue ver carência? Algo a menos, que graça ao desenvolvimento, que um dia via chegar aqui, blá, blá..
Vou lhe contar algo, sabe, isso que você diz é mentira. Já lhe contei a história do "Corte", sim do corte de cabelo que fiz aqui, quando cheguei. Me dizia o mesmo barbeiro um dia desses que o mundo está ficando pior, que as coisas vão se acabando, que já não se fazem machos como antigamente, que ninguém anda armado, que a polícia agora, só eles querem ser os machos. Que merda, que as pessoas estão ficando fracas, que agora só cagam em vasinho branco e nem sabem o que é um bom sabugo, roletinho. Ele se perguntava como os seus netos poderão viver num mundo assim? E isso é verdade, sabe; o que "falta" é o que nos sobra, transborda. Essa diferença é o que faz de nossas menores viagens um épico, uma aventura pra inseguros, pra você! Mas, não pense que queremos que vá embora, não negamos você, somos generosos,  teimosos, sabe, vamos vencer pelo cansaço e por sua inquieta verve, seu vazio mendicante. Quando se der conta estará mais dentro que fora, sem saída. Brigando com a polícia em busca de um tiro de misericórdia; em busca de uma puta bondosa, de outro macho machão para matar ou para morrer. Quando se der conta, será um de nós, mais um na fronteira.

sábado, 7 de novembro de 2009

Leitura: essa desconhecida


Professor Rafael,

Outro dia,

uma autoridade no mundo da História da leitura me disse algo mais ou menos assim: "a leitura é o reino do"...ele usou uma palavra difícil e bonita, como foi mesmo? Não me lembro. Deixa pra lá... (Bem se eu lembrar até o final, eu digo).
Depois de frustar o leitor com uma história que não foi até o fim, conto outra, pode ser? O Chiquinho vai ver nisso uma questão de forma, sei lá; mas a verdade é que esqueci, viu? Ela era minha frase de efeito. Agora tenho quer ir para o plano B.
O cubano Antonio Benitez Rojo disse que existem dois níveis de leitura: aquele no qual o leitor lê a si mesmo e um outro, quando o leitor lê o "texto"; começa a encontrar não o "texto", mas a leitura que o autor propôs para o que escreveu. O texto em sim, esse é desconhecido. Ninguém nunca leu
Não sei o que pode ser ou não verdade, como diria Drummond, "sou apenas um homem simples" e "sinto que não devia falar dessas coisas", mas me dei conta de algo novo nos meandros de minha história pessoal com a leitura.
Antes de tudo quero dizer que o primeiro livro que li foi a Biblia, e que eu fiz um fichamentozinho dela para mostrar do que um macho é capaz; a partir de então tenho lido muito, tentando alcançar os que estão na minha frente, neste momento, como o José Saramago e o Pepetela. Por isso mesmo sempre adorei Borges e suas história de leitores, como Pierre... Mas a Borges faltou algo. Faltou falar de uma experiência de leitura, quer dizer, um tipo de experiência com o texto, quer dizer, com o livro, quer dizer, com o suporte, sei lá... Vamos lá:

Todos que me conhecem sabem que eu li o livro Cien años de soledad de Gabriel García Márquez algumas dezenas de vezes de modo que o decorei, de verdade. Foi através do texto em português que me lancei na aventura que aprener espanhol 'sozinho', o que foi de muita serventia quando cheguei na Colômbia em 2005. Depois disso memorizei também o texto em espanhol de modo que às vezes só para "joder" eu declamava páginas inteiras para meus amigos espanhóis.
Os meus amigos sabem que eu sempre tive uma relação de amor e ódio com o Inglês, o idioma mais fácil do mundo. Estudei durante anos, fazendo corpo mole, me aproveitando de bolsas para estudantes pobres e de algum dinheiro que me sobrava. Depois que me casei, forçei a Sariza a me ensinar e fiz com tal desapego que nunca aprendi nada, nem o regimental "I love you". Mas algo mudou, nos últimos meses.
Quando vim para a fronteira me matriculei num curso de Inglês e estou aprendendo, me dedicando - bem, isso foi depois de me fuder na primeira avaliação, mas já é algo. No último final de semana, consegui na Net uma cópia de Cien años de soledad em Inglês e aí as teorias da leitura foram para a puta que pariu. O problema é que estou "lendo" o texto. Estou no segundo capítulo agora e me dei conta que essa experiência raia a loucura porque não sei se leio ou recordo.

Ah, lembrei a palavra - com o resto da frase - que o professor Vilalta disse, para minha completa insatisfação: "a leitura, amigo, é o reino do imponderável".

Senhores teóricos, sou todo ouvidos...

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Os intelecutais e os poetas. A teoria e o grito



Sabe que eu fui visitar a cidade do Babaçu, Babaçulândia, naquele dia. Por que a pergunta?

Saímos de manhã e fui de carona com vários poetas, representantes da Academia Araguainense de Letras Clássicas, gente versada em Latim e outras línguas difíceis. Uma das figuras mais interessantes com quem me encontrei na vida daquele dia foi o poeta Ítalo-tocantinense Angelo, que veio para o Brasil logo depois da II guerra e chegou em Araguaína em 1958. Ele contava que sua viagem foi, à parte um problema de tradução que houve entre ele, seu companheiro e dois cavalos, um passeio. É verdade: ele era um orionita leigo e sua missão era vir até Araguaína ajudar nos trabalhos da congregação. A viagem teve várias escalas, todas tranquilas. Roma/Rio de Janeiro; trocaram de avião e chegaram a Philadélfia, numa das margens do mui mítico, para os europeus daquela época, rio Tocantins. Daí até Babaçulândia a viagem foi realizada num "motor", que é isso mesmo que você imaginou.

"De Babaçulândia, êh, a Araguaína a gente pegamos, eu e meu, êh, companheiro de viagem, dois cavalos, êh, e se fomos para, êh, nosso destino. A viagem duraria um dia, êh, apenas; mas não foi assim, êh. Em algum ponto do caminho, êh, paramos para comer, êh, um pouco de puba, carne seca e rapadura. Descansar, êh."(Entrevista oral gravada em 30/10/2009)

Aí começou a confusão. Os cavalos fugiram e como os dois falavam apenas o italiano, se fuderam. Acostumados a ouvir português, os cavalos se espantaram com aquela língua de pássaros que falavam os dois, e "caparam o gato". Resultado, os dois ficaram horas no meio do sertão, correndo atrás de cavalos e observando tudo com seus imensos olhos de topázio. Cada grito que davam mais para longe iam os animais. Perplexos e perdidos, no meio do Brasil, ou seja, do nada, os irmãos ficaram por horas.Seu Angelo publicou um livro com essas histórias, se você quiser lhe mando um. Deposita 20 reais na minha conta. Não esquece o dinheiro do correio.

Chegamos a Babaçulândia e fomos apresentados aos artistas locais. Um deles, jovem ainda se apresentou "Sou poeta, escritor e trabalho na farmácia." Um outro afirmou "não sou poeta, faço versos pra mim, sou pai desse aí; sou o dono da farmácia". Começamos os trabalhos batentdo mil salvas de palmas para cada frase do prefeito e vereadores e demais autoridades. Falamos de cultura, desenvolvimento sustentável e patrimônio cultural. Ia terminar minha fala com uma frase de efeito sobre o país e sua elites; mas me alonguei e falei da necessidade de preservar a diversidade cultural, não apenas a poesia, mas a cultura das quebradeiras de coco babaçu, e outras manifestações da cultura ribeirinha, que estão ameaçabas pelo alaguamento que será provocado pela Usiana do Estreito. Enfim, já sabe dessas filhadaputagens que fazem os intelectuais.

No almoço comemos uma galinhada deliciosa que me fez pensar que a teoria é inútil e que a vida e a saliva são o que há. Fomos conduzidos para a parte da cidade que ficará submersa dentro de poucos meses, o lugar mais triste do mundo. As casas sendo desmontadas, tijolo a tijolo; as crianças nas portinholas, com o dedo no nariz, olhando para o rio Tocantins, como esperando a água chegar e transformá-las em pequenos corpos inchados: tudo em preto e branco.Talvez tenhamos sido associados aos "homi das multinacionais", que aparacem de vez enquando ali, descrevem as casas e avisam que devem sair, que estão estorvando, seus pobres, o progresso do país. Quando chegamos nas margens do rio, os poetas da farmárcia não aguentaramm, começaram a improvisar versos magníficos sobre o rio, sobre a cidade inundada, sobre a ingerência de multinacionais na tranquilidade de suas vidas, "que porra, e a gente não pode fazer nada. Só poesia."

No período da tarde pedi que repetissem os versos que haviamos ouvido na beira do rio, inútil. Me olharam com dó: "São coisas que saem dá garganta para não saírem dos olhos". Ouvimos outros poetas dali, um deles falando da despersonalização do artista: da perda da identidade provocada pela produção da arte. Falou de Paul Guaguin. De pintores de realidades melhores. Da realidade que vivem hoje e que há alguns anos era inimaginável, do tempo que tudo destrói.

Pensei em teorizar, vi naquilo, na conferência de cultura, nos versos, um grito de dor, uma necessidade imperiosa de dar resposta à inundação da metade da cidade, à perda das roseiras de seus quintais, das mangueiras da infância e do Rio de toda a vida: "Isso aqui vai ficar com dez quilomêtros de largura, uma repressa."  Desisti da teoria, ela é um erro quando a arte explode capaz de romper tantos estancamentos. "Poetas e farmacêuticos de Babaçulândia" disse pra mim mesmo. Linda metáfora sobre a necessidade de aliviar tanta dor em uma cidade inteira.

Durante o retorno, pensei, com Nietzsche: "sem a arte, a vida, que bosta!, é um équivoco". O poeta ítalo-tocantinense, não concordava inteiramente; contou, enquanto olhava pela janela o verde inundado pela chuva, uma fábula católica sobre a esperança; desconcordei dele. Ele e o outro haviam passado o dia todo tentando verder livros; mal olhando a poesia dos farmacêuticos, desconfiados. Olhei nos seus olhos, meio perplexo. Ele não tinha entendido nada, não havia, cinquenta anos depois, alcançado os cavalos.

domingo, 25 de outubro de 2009

Nas trincheiras e sob ataque...


Fronteira é o lugar onde o mundo conhecido como civilizado encontra o mundo natural. As coisas costumam acontecer assim: um processo de expansão frenético por causa de algum interesse particular. A natureza é rapidamente derrotada pela técnica e o homem civilizado domina o território com a sua infantaria de aventureiros. Essa narrativa exemplar, porém, tem sofrido alguns reveses. A natureza, ao contrário de ser derrotada e desaparecer, reorganiza suas forças, começa uma inclemente guerra de guerrilha contra os civilizados. A violência do ataque pode ser medida pelos estereótipos "lá só tem cobra, muriçoca e potó". Sinal da desilusão histórica daqueles que lutaram na infataria e foram expulsos pelas tocaias mais estrategicamente colocadas pelos generais do ecossistema.
Queria dizer que nasci no Pará, sabe, meus pais foram dos primeiros a chegar em Manuel de Freitas, hoje Xinguara. Vivi 17 anos lá, sempre havíamos lutado surdamente contra a guerrilha natural. Mas saíamos facilmente vencedores, um baigon, um foiçe, um adrin. Contudo, no meu retorno para a fronteira há três meses, percebi que algo havia mudado. Percebi uma sanha, uma insistência, um gasto inadequado de materias; isso me cheirou ao ensaio do ataque final, quando nós seremos aniquilados e varridos do território e a mata retomará seu lugar, no centro de Araguaína. E o pior, tive um sonho. Nele vi uma cidade deserta, com corpos espalhados pelas ruas, sem sangue, secando ao sol. Os telhados, negros, forrados de Urubus, que limpariam o terreno enquanto esperavam as chuvas que fariam crescer a céspede, os arbustos e demais elementos que recuperariam o lugar de onde foram desterrados em 1926. Enfim, há duas semanas, acredito, começou o que parece ser o ataque final. Estamos sob ataque cerrado de milhares de famintas muriçocas, que nós sugam o sangue e nos levam a uma morte lenta, durante o sono, por inanição. Há dois dias, o ataque foi estendido para o dia. Os potós, em perfeita sintônia tática, espargem sobres nossas peles um ácidos que a corrói em terceiro grau. Abrindo caminho para as carapanãs. Os cupins devoram os estabelecimentos públicos e em algumas casas, a luta tem sido centímento a centímento. Em nenhum dos casos restou alternativas, os moradores assustados se refugiaram nas trincheiras. O choque térmico provocado pela alternância de sol louco e chuva diluvial mina as estruturas dos edifícios, desestabiliza o alfasto e estraga o humor das pessoas. So faltam as cobras. Mas elas chegarão.... O ataque tem seguido a lógica dos conhecidos esteriótipos."Aí, Meu Deus!" grita um mulher desesperada que corre como louca na Avenida Philadéfia, sob ataque. Alguns se desesperam e saem às ruas, nisso que dá.
O cenário é o seguinte: nestas duas semanas a cidade inteira se tornou uma imensa trincheira, onde todos se escondem, alucinados, esperando o último, o final e decisivo ataque. Alguns fogem rumo ao sul. Os mais machos ficam, se afundam com a cidade. Seus hormônios serão o alimento da natureza recomposta. Símbolo de algo que os civilizados esqueceram, que tem que ser macho para estar aqui.  Começou há alguns instantes um leve tremer de terra, lento, ouço gritos de socorro pelas ruas, alguém grita que tragam soro, que tragam todosoro antiofidico que tenham. "Aí, Meus Deus..."

sábado, 17 de outubro de 2009

Rascunho de um conto: Jú usou uma UZI


Ju não esperou muito tempo, bastou com que lhe arrocheassem os ovos, ele comprou seu primeiro 38. Aproveitou a dispersão falimiar: a morte do avô e a meia-separação dos pais. Ambiente perfeito para alguém conseguir novos objetivos. Conseguiu fazer do caos dos parentes a sua bonança. Foi então, com 12 ou 13 anos que começou a andar armado na ruazinhas da cidade.
Na escola soube que em algum momento e lugar, os homens matavam-se uns aos outros e depois comiam a carne com satisfação; também sabia que fazia parte de sua formação os filmes sobre a paixão de Cristo que via todo natal na Assembléia de Deus. Morte e salvação, já ouviram falar nisso? Ele sempre ouviu a história do menino assassino, sabem?
É assim: "Num bar da Transamazônica, um menino rolava bolas sobre a mesa de cinuca. Chega um adulto e empurra o Zé, o nome dele sempre era algo genérico mesmo, que enfurecido avança sobre o adulto e é afastao de novo na porrado. Chorando, o Zé fala que ele espere, que vai na casa dele busca a espingarda; que espere que ele via morrer agorinha. O adulto ri, todos no buteco riem do menino. Começam o jogo. Passa algo em torno de dez minutos e se ouve um "ei?". Todos olham, o Zé equilibrando uma escopeta caseira. Dispara, parte o peito de seu agressor em três pedaços".  Jú ria sonhador, o olhar perdido em algum ponto do horizonte do belo. Sua mãe sabia que havia algo de místico nesse olhar: era o mesmo de sempre. Fosse em frente à televisão, fosse nos cultos de terça-feira, ele sempre tinha esse apego com a estética da dor e da morte de muitos. Um dia, na rua, ele conseguiu um fotograma de um filme de ação: uns 20 homens sendo metralhados ao mesmo tempo: cada um caindo para um lado, com um misura de espanto perante a morte. O cena foi filmada com uma sub-metralhadora UZI. Aquilo lhe pareceu lindo, e era. Ele decidiu comprar uma. Mas a malvada vida, sabem, o transformou num professor.
Estudou sobre as revoluções e isso reforçou a estética do caos em movimento milimétrico, o belo da destruição. Leu sobre as chusmas vitorianas, a revolução haitiana, sobre a revolta dos moradores contra os humildes ônibus, discutiu o assalto à delegacia no Maranhão e convenceu-me que os populares estavam certos; que tinham que destruir a delegacia, o forum, o hospital municipal e a Igreja como o fizeram  aqui no Pará, há dois anos. Dizia que esperasse, que o mundo ia se fuder rápido: e que ele estaria esperando, como Nero, ao ver o fogo em Roma, a beleza, o belo que muda o mundo em algo melhor. Citava Shakespeare: Um céu tão sujo não se limpa sem uma tempestade." Contudo, ele me contou algo mais interessante. Uns delírios, algo que viveu com um amigo, o professor Rafael, numa cidade de fronteira, há menos de seis meses. Acredito que por isso estejam aqui. O senhor se acalme que eu vou chegou lá.
Me disse que já havia compra a UZI mesmo antes da defesa de doutorado, que estava com ela no dedo, por de baixo da mesa, quando foi arguido, e que por pouco não acabou com aquilo. Mas o que querem saber é sobre a história no bar. Isso nunca aconteceu, foram apenas delírios.

Bem, foi assim:

"Estavam bebendo uma cerveja e chegou uns caras, com um golf branco. Estacionaram o carro ao lado da mesa do dois, do Jú e do professor Rafael. Começaram a fazer graça, foi isso. O carro tinha a suspensão a ar e era controlada por controle-remoto", pode? "Ele foram provocados. Jú estava com um problema: os alunos dele tinha criado um problemão, se recusado a fazer a prova. Ele estava mal. E o caras lá com o negócio, levantavam, baixavam, levantavam de novo. Cego, o Jú arrancou a UZI, e metralhou o carro! Eles so bateram na polícia porque vocês se meteram na história."

Depois do caos, detidamente apreciado pelo olhar sonhador do atirador, ele fugiram ruma à fronteira de Minas. Ninguém mais ouviu falar deles. Nem sei o porque estou aqui? Ele não veio pra cá, não sei dele. Procurem no Tocantins.

O delegado chegou e pegou o depoimento no chão. Ajudou os dois soldados se levantarem e pergutou ao cabo Silva onde estava o cuturno dele. "Ele levou." E como diabo vocês me explicam isso? Um professorzinhoa qualquer bater em dois policiais e um escrivão e fugir assim. Vamos caçar esse miserável.

Notícia de Jornal: O Liberado, 19/10/2009. "Um individuo que dava aulas na faculdade no sul do Pará era na verdade um procurado pela polícia por metralhar um bar em Itumbiara, Goiás. Depois de agredir alguns policiais, ele fugiu. Ninguém sabe para onde."

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O círculo e o sonho: a 140 por hora na Contra-mão


Sei não, sei não: aqui em minha caixinha de surpresas existe uma rua chamada Cônego João Lima. A rua da cidade. Todo o comércio, popular, assaltos, policiamento reforçado. Aluguel caro. Pessoas, carros, buzinas. Um micro-cosmo, mini-cosmo, melhor dizendo. O mais importante é, porém, que ela fica em aclive. Uma subida. 
O meu amigo professor José Mário me disse outro dia, quando andavámos pela refereida avenida, que sempre foi um bom menino, mas depois de cinquenta anos as coisas se relativizam. Ele anda sonhando algo novo. Sonha que está no topo da Cônego, no sentido contrário ao trânsito, com um Caminhão Volvo 12 machas, acelerando. Queimando óleo alto. E que quando tira um pé e finca o outro, acorda. Ele respira aliviado, ainda bem.
Eu, porem, disse a ele: "Isso não pode ficar assim, uma história tão boa". Vamos terminar esse sonho no mundo real.

"De modo que aquele professor pegou, ontém a tarde, dia 15, um Volvo emprestado, acelerou, acelerou, urrou como um animal ferido, e desceu desenfreado, causando pânico, terror, e me mantando de rir, a referida avenida".


Imaginamos toda a cena, até a notícia de Jornal: "Professor da Universidade desceu a Av. Cônego na contra mão, num caminhão Volvo a 140 por hora. Perguntado pelo motivo de tal despropositada atitude, ele disse a nosso repórter ´ai, foi apenas um sonho`".
Mas o Zé não concordou com o final: "Isso de foi apenas um sonho não cola. Péssimo final. Fica um pouco..." "O quê, Zé?" perguntei. Ele olhou em volta, como procurando algo chão, e disse. "Sei não, sei não: vai que isso acaba acontecendo, bem que merecia, né?". Foi quando ouvi um apitaço viking e vi gente saindo para os lados, e o pânico do assalto de um anjo sueco de 500 cavalos  descendo como um trovão a avenida, na contra-mão. Olhei para o Zé, firme, perguntando "mas que satanás é esse?":. Ele disse: "aí oh, aqui a gente nem pode sonhar nada que vem um acaba fazendo."

domingo, 27 de setembro de 2009

Transterror: ida e volta. P.S. Uma história de amor


O professor Dadinho, conhecido como Cássio sei la do quê, fez comigo, no ano de 2008, uma viagem de 52 horas entre Ituiutaba, Minas Gerais, e Rio Branco, Acre. Como o ônibus havia saído de São Paulo, houve um heroíco senhor que viajou 58 horas. Fomos conduzidos por uma empresa chamada Rotas, lindo nome esse. Contudo, nada como uma viagem de dezoitos horas num ônibus da Transbrasiliana para ver o quanto aquela viagem foi pouco loquaz.
No último dia 22 de setembro, às 13h estava a procurar uma passagem para Goiânia. Fui a outras duas empresas, mas um delas, a Medianeira, foi alvo de minha censura imediata, havia sofrido uma irritação intensa na última vez que fui transportado ali. A concorrência mais digna, a Satélite Norte, uma empresa de qualidade superior, também foi evitada pela diferença no preço, 6 reais, e porque só vende à vista. Não sei o que passou pela minha cabeça, optei pela Transbrasiliana. Na verdade, sei. Da última vez que fui à Goiânia ocupei o acento 29 de um carro desta empresa, que faz a linha Goiânia-São Luiz e as condições eram aceitáveis. Isso me enganou, ledo engano. Descobri isso quando entrei no ônibus, no dia seguinte.
Como disse meu amigo Wesley, cisterneiro é um trabalhador viril, que suporta altas temperaturas cavando terra à dentro. Quando entrei no ônibus, senti um tufo de mal-cheiro, mistura de hormônio de macho, suor curtido por fugos bravos, mal hálito de cú e cheio de queijo fresco. Tudo centrifugado no calor do TO e nos duzentos quilômetros que o carro já havia percorrido. Troquei de lugar várias vezes porque os cintos de segurança, de todos os bancos, estavam sujos, pisados, com uma delicada e poética crosta de chiclete de menta, saliva de catarro maduro e poeira do norte. Falei para o motorista "este ônibus está fedendo". Ele disse "fedendo nada" e me olhou pesado e como que disse com os olhos "macho que é macho não reclama dessas coisas". Tomei um sonrisal e suportei estoíco.
Só fui entender o porque uma empresa tão conhecida e reconhecida por muitos não faz nenhuma questão de cuidar de seus carros e de respeitar as sensibilizadas de seus passageiros quando retornei de Goiânia, o que fiz hoje. É que procurando um hotel para pernoitar em Gurupi-TO fui conduzido por uma série de circunstâncias ao Transhotel, o totalmente excelente hotel da Transbrasiliana. Totalmente mesmo. O prédio é velho, mas os quartos demonstram um glamour anacrônico. Ficamos num quarto para três pessoas onde havia dois banheiros: apenas um deles funcionava. O que descobri quando, já nú, fui ligar a deliciosa água que não caiu porque o cano estava interditado por uma sacola velha. Contudo, quando senti sede tudo fez sentido. Introduzido num pátio gigante vi, espantado, duas piscinas lindas, redondas, sujas e verdes como um pedaço de queijo esquecido no fundo da geladeira. Fiquei espantado. Não consegui entender porque daquilo. Porque uma estrutura daquela entregue à deteriorização. Pensei, coçando minha barriga, durante algumas horas, espalhado sobre um lençol verde e olhando para o teto forado pelo símbolo da empresa.
Acredito que a Transbrasiliana, na verdade, sobreviveu a si mesma. Ela faz parte de um tempo heróico, aquele da expansão do Brasil sobre a Amazônia, quando a Belém-Brasília foi construída, quando o sonho dourado de desbravar ainda movia machos de todo o país. Sua cultura organizacional também, seus hotéis, que já foram os mais luxuosos, os mais importantes de várias cidades da BR-153, agora não passam da última opção - como todo o resto da empresa - de uns poucos viajantes. Ou seja, ela parece ser uma carga pesada para seus gestores, algo de que eles não gostam, parece, como um tio velho que não teve filhos e que, porra, só serve para atrapalhar. Senti, frente àquelas piscinas, que ela vive de passado e, algo muito mais aterrador, da caridade de alguns poucos nostálgicos que ainda a respeitam. O problema é que estes, os seus heróicos passageiros dos tempos dourados, estão morendo como mosquitos. A velhice, como diria Drummond, os espalhou por uma vasta rede de cemitérios do interior da Amazônia. Meu avô, por exemplo, morreu há 7 anos. Ele adorava a empresa. Achava lindo seu verde chuva e parava quando passava um Transbrasiliana. Ele podia ficar tranquilo, talvez sentisse, eles sempre estariam ali, passado para lá e para cá, lembrando que ainda faziam partes do mesmo país lugares imensamente distante, então, como Xinguara e Goiânia. Como Itaituba e Rio de Janeiro. Hoje, não sei se alguem sente algo semelhante. Acredito, contudo, que todos que  viajam por esta empresa, jantam ou dormem em seus hotéis, são transportados em seus mal-cheirosos ônibus, mal-tratados por seu motoristas, pensam algo diferente, pensam, meu Deus, até quando ela vai sobreviver com uma indiferença tão grande por seus passageiros, por seus carros e hotéis; com um desprezo tão desbordado com sua própria história.

P.S. Maria entrou no ônibus em Araguaína. Sentou na poltrona 23. Na 24 estava uma senhora com câncer, verde e vestida de mostarda. Dois banco atrás, na 27, vinha um senhor, um macho rude, que penteava o cabelo com  aquelas escovinhas da década de 1970, sabe?. Maria não resistiu. Ela passou, alguns quilômetros depois, para o banco 28.  Ela não pode resistir ao, quem sabe, último exemplar de uma estirpe lendária: os garimpeiros. Lembremos do que disse Sergio Buarque de Bélgica ou Holanda: os aventureiros sempre ganham os melhores prêmios. Cem quilômetros ou três municipios depois eles já estavam falando mole; mais dois municípios e começaram a se pegar. Esperaram a noite chegar e redefiniram os rumos da relação. Fizeram um amor mítico, de ladinho, em exíguas duas poltronas. A senhora da poltrona 24 começou a chorar e eu senti que havia algo de inveja ou lembrança em suas lágrimas, sei lá. 800 quilômetros depois o garimpeiro desceu, virou e deu um tchau com a mão. Sumiu na noite. Maria virou para o lado e dormiu. Eu dormi, o ônibus dormiu. Acordei com o motorista me chamando, "ei?". De novo me deu com os olhos uma lição sobre ser homem. Levantei meio atordoado. Fiquei pensando: macho é macho mesmo: dirige ônibus verde, trepa em público e não reclama de nada. Me lembrei de meu avô, da viagem que fiz, há um ano, na Rotas, do senhor das 58 horas, sumi no tumulto de parentes se abrançando. De lembranças se reencontrando.

PS II. Há dez dias enviei essa crônica para o SAC da referida empresa. Nada de resposta até agora.

sábado, 19 de setembro de 2009

(In)cômoda II


Acreditem ou não,

o senhor Professor Rafael ficará sabendo em primeira mão o que havia acontecido com a minha cômoda. Espero que o senhor e demais professores acreditem, pois eu estou até agora dizendo "Nó!!!!!!!!!!"
A cidade de Wanderlância fica a 54 quilômentros e 100 metros de Araguaína, de trevo a trevo. No rumo norte. De acordo com o IBGE,  a cidade possui 9500 e poucos habitantes e se destaca pelo ecoturismo; nos seus arredores existem pelo menos cinquenta cachoeirras, lindas. A cidade é antiga e recebeu esse nome por causa dos Wanderley, família lendária que tinha a não menos importante função histórica de mandar em tudo por aqui. Parece que aqueles românticos coróneis arrogavam primazia em tudo, na virgindade das moças, nas comidas coletivas, nos favores públicos, na memória do povo, no oficios religiosos. Por exemplo, nos dias de procissão o santo primeiro abençoava as suas casas, depois do resto dos mortais.  Eu não conheço a cidade. Mas a minha cômoda sim; ela tinha ido parar lá.
Ninguém sabe porque, nem como, nem com quem. Mas desconfio que a tradição histórica da primazia fez os entregadores do Armazém Paraíba levarem meu bem à cidade para a benção dos coróneis; quando chegaram aqui na última sexta fiz eles saberem de minha gratidão por isso. Ela ficou largada num canto da loja da rede Paraíba de lá, sozinha. A coitada! O pior é que ela quase foi (re)vendida e entregue para o Dr. Filipe Wanderley, médico e descendente de coróneis. Depois de olhar a peça, quem sabe conferindo direito à sua existência nesse mundo que não é nada sem o seu nome, ele desistiu. Dizem que disse "isso é coisa de pobre" e saiu da loja. Foi assim que a encontraram, empobrecida, rejeitada. E só o fizerem porque o gerente da loja ligou em Araguaína devolvendo a peça porque ninguém queria "aquela bosta".

Att


Professor Dernival

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

(In)cômoda


Professor Rafael,


quando retornei de Goiânia há justos 10 dias me decidi pela comodidade. Andei pela cidade procurando uma cômoda que reunisse duas propriedades fundamentais: boa e barata. Nas próximidades de minha casa, há um quilômetro de onde estou agora, encontrei o Armazem Paraíba. É bom que o senhor saiba que a referida loja mantém, uma do lado da outra, uma casa de móveis novos e uma outra de móveis danificados e de mostruário. Nesta última encontrei uma peça com características similares, com algumas ranhuras, por R$: 272,00. Decidi compar. Afortunadamente, fui obrigado a ir na loja de móveis novos fazer o pagamento. Para minha surpresa, ali estava a mesma cômoda, nova, por R$ 249,00. É bom o senhor saber que na loja de móveis danificados que a mesma empresa mantém, a única forma de pagamento era à vistinha, cash. A cômoda nova era mais barata e ainda podia ser paga em suaves parcelas e com juros módicos de 9% ao mês. Falei "Nó, vou comprar a nova!" Comprei, paguei, fui embora esperando a comodidade de poder guardar minhas peças de vestuário íntimo em um móvel novo, com aquele cheirinho. Isso fará uma semana amanhã e a minha cômoda não foi entregue. Fui à loja hoje - com a cópia da nota fiscal  - e eles não sabem onde ela está, nem com quem, nem têm a mais puta idéia do que aconteceu.

Att

Dernival

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Ciência animal tropical III e IV



Professor Rafael,

há algum tempo abri um jornal do Pará de 1994 e li:

"Um pescador morreu ontem à noite na Bahia do Guajará, próximo a Belém, asfixiado por uma sardinha. O pescador José João da Silva morreu no Hospital das Clínicas depois de ser levado inconsciente à emergência do referido hospital. O pescador morreu de asfixia provocada por peixe da espécie Sardinops ocellta, conhecida popularmente como sardinha. Os seus companheiros de pescaria disseram à polícia que estavam pescando e as sardinhas começaram a pular sobre o barco. Uma delas teria entrado certeira na cavidade bocal de José João. A autopsia encontrou o peixe bloqueando as vias respiratória superiores do pescador. Os pescadores estavam pescando na piracema". (Jornal O liberado, p. 04, 01 de abril de 1994)

Meu pai que sabe muito de pescarias me disse quando eu lhe contei a notícia, "elas fazem coisa pior." Ele me contou que em Borba, na margem esquerda do rio Madeira, um médico teve que operar um moça às pressas porque ela chegou no postinho "com um sardinha escodida na, como se diz, buceta". Eu olhei para ele com uma cara desconfiada e ele respondeu "é, mas eu vi a chapa." O que me fez pensar: no caso do pescador de Bélem, o que aconteceu foi um ato de resistência das sardinhas contra a opressão imperialsita dos pescadores paraenses: um atentado terrorista. No caso da sardinha da moça, foi suicídio mesmo.

Att

Prof. Dernival

Ciência animal tropical II

E por falar nisso, Prof. Rafael,

o meu avô, José Venâncio, que tinha os colhões um do lado do outro, também se envolveu numa conversa sábia com dois Tapirus terrestris chamados Tomé. O Tapir ou anta, é um animal sábio e preocupado com seus amigos, contudo, ele é bastante exigente com as ações humanas. Dezenove dias depois de meu nascimento, dois Tapirs, muito amigos, foram, provavelmente, dá um rolé pela mata; no caminho pararam em baixo de um lindo pé de Puçá, cuja flor adocicada é uma paradinha doida para eles. O problema é que meu avô estava sentado numa rede a alguns metros de altura, "esperando".  Quando eles chegaram ele armou a sua velha calibre vinte e disparou. Imediatamente ele ouviu "e aí Tumé, pegou em ti?","Não. E em ti, Tumé?","Nãm". Aliviado, o primeiro dos Tapirus terrestris disse "então vamos, né?".... Meu avô não se convenceu, recarregou a espingarda e disparou de novo, errou mais uma vez. Aí virou chacota: "vai ser ruim de tiro assim no inferno!"Isso foi a última coisa que o senhor José Venâncio, pai de 11 filhos e crente da Assembléia de Deus, ouviu na noite do dia 23 de abril de 1979, às vinte horas e quarenta e cinco minutos.
Att,

Professor Dernival

Ciência animal tropical


Veja o senhor Professor Rafael,

o que é a (cons)ciência animal tropical. Um grande amigo nosso estava no arredores do Tocantins. Ele caçava Tolypentis tricinctus, o vulgo Tatu; e como o cara é macho pra caralho sempre fazia isso às unhadas. Naquele dia de infortúnio, porém, levava um facão. Avistado um mexe que mexe no fundo de um descampado, acelerou o passo. Atacou preciso. Pegou o tatuzinho  pela calda e ia passar o bicho no facão. Neste momento de hombria desatada, suas narinas ofegantes, ficaram frente a frente com o animal que virou e disse em português muito correto: "Num cridito, num cridito, num cridito que cê vai fazê isso cum Gonçalim". O Nilson percebeu um certo amargor fatalista na voz saudável do Tatu. Isso o senhor sabe, não acontece todo dia. Mas ele nunca mais pisou um centímetro que fosse dentro de qualquer coisa verde, o que inclui grama de plástico. Por exemplo, quando viajou pela BR 153 no mês de julho e se viu obrigado a aliviar sua virilidade da pressão da urina, parou o carro e mijou loucamente no asfalto ardente, sentindo a evaporação de seus hormônios. Não sei o que explica atitude tão drástica quanto às coisas verdes, saberá o senhor professor Rafael?


Att

Professor Dernival

domingo, 13 de setembro de 2009

Primeiras notícias



Professor Rafael,


aqui é “trevas”. Mas mesmo as trevas têm seus encantos. A cidade é uma urbe de fronteira, eternamente por acabar, tudo meio provisório (talvez para sempre provisório). O mais desagradável ao senhor, porém, seria o calor. Aqui é quente pra caralho - mas a Consul vende uns aparelhos de ar condicionado ótimos a preços módicos. Eu, por minha parte, sou macho e isso implica agüentar o calor e os insetos - milhares deles, como pontos negros, moleculas zuzunantes no ar da manhã (e da tarde e da noite). Não comprei um condicionador de ar e entrego meu sangue aos insetos como se fosse uma purificação de minha linhagem. O custo de vida é caro, muito caro e até agora não foi possível encontrar um buteco trevas, um chopp doido ou um café expresso espesso. Nada dos prazeres burgueses; os prazeres aqui são mais viris: caça à onça, fuga da polícia, cachaça curtida em tranças de cascável. Coisas de machos, sabe? “¿Qué a usted le parece, Profesor Rafael?”

Att,
Professor Dernival

sábado, 12 de setembro de 2009

Tiros na pecuária




Professor Rafael,



aqui a vida vai animada. No último final de semana, professor Rafael, eu e a Sariza resolvemos fazer uma viagem ao Maranhão do Sul, precisamente à cidade de Imperatriz, como dizem lá, Portal da Amazônia. Mas que faz parte da zona geográfica de transição entre Cerrado e Floresta Chuvosa; do ponto de vista sociocultural é uma sociedade de fronteira, criolla. O motivo da viagem foi que o Prof. Degson foi rever a namorada; havia também um evento cultural de suma importância na região: um show de Bruno e Marrone.

Seria bom que o senhor soubesse que o rio Tocantins margeia a cidade e que ao chegar, no sábado, fomos levados à praia - na verdade um barranco, íngreme, que os “nativos”, na falta de algo melhor dizem ser a melhor praia da Amazônia Legal. Um mentira, obviamente. Ali ficamos nos banhando e comendo um peixe frito; havia skol de ótima qualidade. Á noite fomos comer uma carne seca, um camarão. Dormimos tarde, ansiosos pelo dia seguinte e por tudo que aconteceria.

O problema realmente foi que esse “tudo”, que agora sabemos "trevas", então parecia promissor. O senhor tem que concordar que um show do Bruno e Marrone é zuação de primeira. Isso de dormir na praça pensando nela, profundo isso. O almoço foi na casa da namorada do Prof. Degson. À tarde ficamos no hotel, tomamos açaí na tigela e comemos outras iguarias nativas. Às 21h tudo começou.

Demoramos três horas para chegar do centro de Imperatriz ao parque de exposição agropecuário. Um engarrafamento digno do noticiário paulista. Chegamos e fomos logos conduzidos, como gado (as elites daqui têm uma mania de tratar os pobres como gado; fiquei cantando Admirável Gado Novo o tempo todo). Empurrados, amassados, manuseados, enfim, entramos na GRANDE ARENA DE SHOWS DA EXPOIMP. Ali o monopólio era da Schin e essa cerveja custava três reais cada latinha. Mas a felicidade de ver e participar de tão grandioso evento de cultura me animou e eu bebi duas latinhas, depois fui de pinga mesmo... O Show foi cansativo e depois fomos procurar um lugar para comer algo, uma picanha. uma buchada, um chambari com puba. O bar escolhido chamava-se Texana, o “point” da EXPOIMP: ali tinha música ao vivo e os brancos ricos estavam comendo gulosamente suculosos pedaços de carne seca, de picanha, camarão, a delícia de um buchada e o explendor de um chambari, enfim.... Estavamos na ruazinha enfrente ao bar, no meio da multidão.

O tumulto era tamanho que estávamos desistindo, não havia lugar e como o bar oferecia música ao vivo havia uma pequena multidão aproveitando a música grátis. Ouvimos que o dono do bar tinha que fechar o estabelecimento ou parar a música; afinal muito macho junto acaba em confusão. Ele ficou indignado e começou a xingar com o microfone em mãos os policiais que estavam ali dispostos a fazê-lo a fechar ou parar a música. Íamos saindo quando o tenente que dera a ordem puxou o referido comerciante de bebidas, picanha e buchada pela camisa e o derrubou do pequeno palco. Tudo que se viu foi um monte de policiais sobre o homem, como se fossem adolescentes brincando de "montinho"; a cavalaria invadiu o bar e um rapaz deu um grito! Um cavalo pisou no pé dele. Ninguém sabe quem começou, mas como aqui só tem macho, um deles, arremessou um copo de uísque num dos homens da cavalaria. Foi uma chuva de copos. O cavalo levantou as patas da frente, e o policial ficou, um segundo, como um monumento de um antigo regime derrubado pela revolução, vítima de copos e escárnio. O cavalo era branco e eu vi que era mangalarga, machador, o que poderia ter me lembrado o cavalo de Napoleão. Mas começou o tiroteio e tive que sair "vuado"....
Eu e a Sariza voltamos para o hotel, trepamos entusiasticamente e dormimos. O sono foi tranqüilo, dormi como uma criança. Nada como um tiroteio para fazer um macho dormir bem. Ontem voltamos para Araguaína. O professor Degson contínua lá, em algum lugar....



Att.



Professor Dernival

O corte

Professor Rafael,



não pense que a vida aqui nesta terra de areia é apenas calor; existem outras aventuras. Um ato cotidiano como cortar o cabelo pode se tornar uma pequena aventura e levar você a conhecer alguns personagens muito interessantes. Veja o senhor, hoje acordei com vontade de cortar o cabelo e com essa intenção fui ao centro da cidade. No primeiro salão onde entrei cobravam nada menos que vinte reais. Decidi procurar preços mais populares; ao lado de uma praça encontrei vários salãozinhos. Entrei no primeiro e um senhor, negro, de um metro e noventa me recebeu: cabelos brancos e uma barba feita com um precisão cirúrgica. Perguntei quanto era o corte: era sete reais. Falei que pagava cinco; ele repetiu seco: "É sete reais". Suas palavras possuíam uma convicção, algo pontual, como se desse uma ordem; me decidi a pagar. Sentei-me numa cadeira fabricada em 1962, no centro de São Paulo. Conversa vai, conversar vem; eu tentando ser agradável, perguntei se ele era de Araguaína, "Sim, nascido e criado aqui"; perguntei como era a vida aqui, "Boa", qual o bairro mais violento da cidade, "Onde eu moro, Araguaína sul", e assim foi... Perguntei se roubavam muitos carros aqui, "Muitos, todo dia roba".


Neste intervalo de conversa nada promissora, ele tinha cortado o cabelo e estava preparando a “gillete” para fazer a minha barba. Falar de carro e de roubo de carro abriu o coração dele. Me disse com a navalha não, vindo perigosamente no rumo de minha garganta, "Sabe, eu matei um cara!". Não sei o que aconteceu, mas a cadeira ficou pequena e tive que mexer e virar para conseguir me manter nela."Sabe, eu comprei um carro uma vez", disse isso raspando a maça de meu rosto, "E nem uma semana um cara entrou na minha casa", desceu a lâmina no rumo da garganta, raspando com vigor a minha pele, "mas eu acordei a tempo e ele pulou o muro. Aí eu fui na casa do meu irmão e peguei a 44 dele", perguntei se era a espingarda 44, "é", continuou raspando, "disse para mim mesmo que se esse vagabundo entrasse de novo na minha casa de lá ele não saia". É bom deixar claro que o meu desconforto na cadeira aumentava, parece que ela foi diminuindo de tamanho à medida que conversávamos, "Quando a gente tem que matar, mata mesmo, fica aquila na cabeça. Esperei umas três noite com a 44 e uma noite lá vem o vagabundo" nisso ele estava raspando a região daquela artéria vital (morta!) da garganta, o senhor lembrará professor Rafael, "Esperei ele pular o muro" ele continuou, "e atirei. Caiu estribuchando no quintal, ficou lá". Pensa num homem que riu sem graça: eu! O que a gente diz numa hora dessas, professor Rafael? Respirei aliviado, ele havia terminado. Queria mostrar o trabalho no espelho, eu disse "não, precisa disso não". Me levantei o mais discreto possível, paguei, limpei o pescoço - limpei meu pescoço com muito carinho, professor Rafael - e falei olhando para o chão, "então até mais, mês que vem eu volto....."




Att




Professor Dernival