Saímos de manhã e fui de carona com vários poetas, representantes da Academia Araguainense de Letras Clássicas, gente versada em Latim e outras línguas difíceis. Uma das figuras mais interessantes com quem me encontrei na vida daquele dia foi o poeta Ítalo-tocantinense Angelo, que veio para o Brasil logo depois da II guerra e chegou em Araguaína em 1958. Ele contava que sua viagem foi, à parte um problema de tradução que houve entre ele, seu companheiro e dois cavalos, um passeio. É verdade: ele era um orionita leigo e sua missão era vir até Araguaína ajudar nos trabalhos da congregação. A viagem teve várias escalas, todas tranquilas. Roma/Rio de Janeiro; trocaram de avião e chegaram a Philadélfia, numa das margens do mui mítico, para os europeus daquela época, rio Tocantins. Daí até Babaçulândia a viagem foi realizada num "motor", que é isso mesmo que você imaginou.
"De Babaçulândia, êh, a Araguaína a gente pegamos, eu e meu, êh, companheiro de viagem, dois cavalos, êh, e se fomos para, êh, nosso destino. A viagem duraria um dia, êh, apenas; mas não foi assim, êh. Em algum ponto do caminho, êh, paramos para comer, êh, um pouco de puba, carne seca e rapadura. Descansar, êh."(Entrevista oral gravada em 30/10/2009)
Aí começou a confusão. Os cavalos fugiram e como os dois falavam apenas o italiano, se fuderam. Acostumados a ouvir português, os cavalos se espantaram com aquela língua de pássaros que falavam os dois, e "caparam o gato". Resultado, os dois ficaram horas no meio do sertão, correndo atrás de cavalos e observando tudo com seus imensos olhos de topázio. Cada grito que davam mais para longe iam os animais. Perplexos e perdidos, no meio do Brasil, ou seja, do nada, os irmãos ficaram por horas.Seu Angelo publicou um livro com essas histórias, se você quiser lhe mando um. Deposita 20 reais na minha conta. Não esquece o dinheiro do correio.
Chegamos a Babaçulândia e fomos apresentados aos artistas locais. Um deles, jovem ainda se apresentou "Sou poeta, escritor e trabalho na farmácia." Um outro afirmou "não sou poeta, faço versos pra mim, sou pai desse aí; sou o dono da farmácia". Começamos os trabalhos batentdo mil salvas de palmas para cada frase do prefeito e vereadores e demais autoridades. Falamos de cultura, desenvolvimento sustentável e patrimônio cultural. Ia terminar minha fala com uma frase de efeito sobre o país e sua elites; mas me alonguei e falei da necessidade de preservar a diversidade cultural, não apenas a poesia, mas a cultura das quebradeiras de coco babaçu, e outras manifestações da cultura ribeirinha, que estão ameaçabas pelo alaguamento que será provocado pela Usiana do Estreito. Enfim, já sabe dessas filhadaputagens que fazem os intelectuais.
No almoço comemos uma galinhada deliciosa que me fez pensar que a teoria é inútil e que a vida e a saliva são o que há. Fomos conduzidos para a parte da cidade que ficará submersa dentro de poucos meses, o lugar mais triste do mundo. As casas sendo desmontadas, tijolo a tijolo; as crianças nas portinholas, com o dedo no nariz, olhando para o rio Tocantins, como esperando a água chegar e transformá-las em pequenos corpos inchados: tudo em preto e branco.Talvez tenhamos sido associados aos "homi das multinacionais", que aparacem de vez enquando ali, descrevem as casas e avisam que devem sair, que estão estorvando, seus pobres, o progresso do país. Quando chegamos nas margens do rio, os poetas da farmárcia não aguentaramm, começaram a improvisar versos magníficos sobre o rio, sobre a cidade inundada, sobre a ingerência de multinacionais na tranquilidade de suas vidas, "que porra, e a gente não pode fazer nada. Só poesia."
No período da tarde pedi que repetissem os versos que haviamos ouvido na beira do rio, inútil. Me olharam com dó: "São coisas que saem dá garganta para não saírem dos olhos". Ouvimos outros poetas dali, um deles falando da despersonalização do artista: da perda da identidade provocada pela produção da arte. Falou de Paul Guaguin. De pintores de realidades melhores. Da realidade que vivem hoje e que há alguns anos era inimaginável, do tempo que tudo destrói.
Pensei em teorizar, vi naquilo, na conferência de cultura, nos versos, um grito de dor, uma necessidade imperiosa de dar resposta à inundação da metade da cidade, à perda das roseiras de seus quintais, das mangueiras da infância e do Rio de toda a vida: "Isso aqui vai ficar com dez quilomêtros de largura, uma repressa." Desisti da teoria, ela é um erro quando a arte explode capaz de romper tantos estancamentos. "Poetas e farmacêuticos de Babaçulândia" disse pra mim mesmo. Linda metáfora sobre a necessidade de aliviar tanta dor em uma cidade inteira.
Durante o retorno, pensei, com Nietzsche: "sem a arte, a vida, que bosta!, é um équivoco". O poeta ítalo-tocantinense, não concordava inteiramente; contou, enquanto olhava pela janela o verde inundado pela chuva, uma fábula católica sobre a esperança; desconcordei dele. Ele e o outro haviam passado o dia todo tentando verder livros; mal olhando a poesia dos farmacêuticos, desconfiados. Olhei nos seus olhos, meio perplexo. Ele não tinha entendido nada, não havia, cinquenta anos depois, alcançado os cavalos.