sábado, 2 de junho de 2012


O sétimo dia




De uma conversa com a discente Santos


Nos primeiros dois dias:

De algum modo, ele chegou mais ou menos no meio dia e atravessou, do rio ao fim da rua, todo o povoado. Armou a rede garimpeira em uma das árvores jovens e dormiu. Os poucos que viram sua sombra passando se esqueceram dele até que dois dias depois, alguém notou o azul marinho da rede e chamou os outros.
Chegamos perto e vimos aquele homem meio gordo, com dobras de gorduras rosadas avançando sobre suas calças. O que impressionou os mais velhos foi o bem feito que eram os nós nas cordas. Até que alguém ouviu o seu leve ressonar,
Ele está vivo! Alguém disse.
Ainda bem que não veio morrer aqui, Maria falou.
Um dos braços caiu para fora da rede e nós recuamos. Ele abriu os olhos, se sentou na rede e o mais corajoso de nós disse,
Opa,
E ele respondeu, Opa!
 Maria lhe perguntou se ele estava com fome,
Estou cheio, obrigado, respondeu.
Lhe perguntaram o seu nome,
José, retorquiu.
Alguns dos presentes saíram e foram retornam a seus lugares no mundo. Na banco da praça, debaixo da mangueira, na proa da canoa, na cozinha de lenha. Do lado do rádio. Por fim alguém disse,
Então, até mais.
Até, até mais.

No terceiro dia:

Vê-se que ele vem de longe. Seus pés estão cheios de calos, sua boroca, gasta, e o jeito que usa as palavras não se parece com nada que eu já vi, disse Antônio.
Maria, torrando o café, só confirmava com a cabeça, Parace que ele é muito só. Quem sabe ele não fica aqui?
De quem estão falando, mãe? Perguntou Josi. Daquele que chegou, ontem? Ou antontem?
Ah, eu vi. Ela respondeu. E saiu. Antonio olhou para ela e viu quando atravessou a porta e foi absorvida pela luz do sol.
Às vezes me pergunto, de que cor é ela. Ele disse. E completou, Todo dia parece de uma cor diferente... Maria trouxe o café, que envolvia a cozinha numa densidade calma.
Desculpem, disse José da janela. Eles se viraram e Antonio disse,
Opá.
Opá, respondeu José.
Maria disse Entre, entre... vem comer algo.
Estou cheio, respondeu José.
Ele entrou e sentou-se,
Desculpem, repetiu. Posso tomar um pouco de café?
Maria se sentou e lhe ofereceu um copo que ele olhou com calma.
O senhor veio de onde? Maria deu o primeiro golpe.
Eu venho vindo faz tanto tempo que nem sei mais de onde sai, ele riu.
Todos riram, inclusive Josi que havia se sentado na mesa, sem ninguém perceber. Ela olhou para ele e perguntou,
E espera chegar algum dia?
Ele tomou um gole quente de café, Sim. Eu espero. Talvez esteja chegando. Não encontrei o lugar.
E daqui, o moço vai para onde? Quis saber Maria.
Vou ficar uns dias, respondeu José. Talvez mais, não sei. Continuou,
Queria saber se posso ficar no rancho, por causa da chuva!
Sim, adiantou Maria. Antonio balançou afirmativamente a cabeça, olhando para ela, que sempre lhe adianta na conversa com terceiros.

No quarto dia:

Josi viu que José havia transferido a rede para o rancho do paiol. Virou-se e olhou para o rio, de onde vinha a chuva. O rio fazia uma curva, quase um nó. O povoado estava na ponta de uma espécie de península. Caminhou até o paiol.
Ele estava manipulando um pacote, um livro.
Opa, ela disse.
Opa, ouviu como resposta.
Você quer comer? Ela disse? Não, ele respondeu. E um café? Ela insistiu. Isso aí é a bíblia? Jose quis saber. Nada, ele respondeu. Um livro, historinhas, a que eu mais gosto se chama O artista... 
Hein, ela disse? O trovão! A chuva já estava começando e ela saiu correndo. José ficou pensando, Ela não era morena ontem? Hoje está quase negra. Continuou lendo mesmo sob o vento. Dormiu um pouco e começou a sentir que depois de anos, poderia estar sentido algo que fosse chamado de fome.

O sétimo dia: versão de Jose

Josi perguntou à mãe se aquilo não era doença. Dormir tanto. E também tinha o fato de que a José nunca ninguém tinha visto comendo. Quando Josi foi ao paiol, ele tinha desaparecido. Não havia deixado resto de nada, nem marcas das cordas nos caibros.
Ela olhou para o rio e voltou para casa.
Mãe, ele foi embora, Josi disse ao entrar na cozinha.

O sétimo dia: versão de José

José viu, ao acordar, que ela estava ali.
Opa, ele disse.
Opa, ouviu como resposta.
O que poderia ser chamado de fome voltou a incomadar. E por isso, ele decidiu retornar ao sono. Se deitou na rede e fechou os olhos. Pouco antes de pegar no sono, sentiu a rede pender com a densidade de outro corpo. Corpo que aninhou a cabeça no seu peito, se preparando para dormi com ele.  
Ele sonhou que acordavam e faziam portas para o rancho, que plantavam uma orta, no fundo do quintal, e mais adianta, quase na mata já, plantavam uma roça. No sonho ele sentia muita fome, e ela oferecia a ele boa comida.
Eles sonharam que numa tarde, sentado na parta do rancho, com os dedos mindinhos cruzados, tinham que descobrir um jeito de contar tudo aquilo. Ela disse a ele, Como vou fazer para por você na vida dos demais? Simples, diga que eu sou o botô. E ambos riram até o sol se por. 

O sétimo dia: a versão de Antonio

Não fiquem perguntando, Não sabemos, Maria disse, se adiantando a Antonio. Ele confirmou com a cabeça. 

Um comentário:

  1. Caro Dernival, como é bonito compreender o resgate que a linguagem simbólica pode realizar na vida humana, sobretudo no momento em que o caos parece prevalecer. As esperanças que nutrimos parecem nos socorrer dos medos que sentimos. Cada ser humano, ao seu modo, espera ou desiste. Se espera, ele se torna capaz de fazer revolução. Se desiste, ele apressa ainda mais o crescimento e a prevalência dos medos sobre o nosso tempo. Acredito que a simbologia nos socorre quando o peso da realidade insiste em nos mascarar. Deve ser por isso que eu gosto tanto de poesia e de literatura. Elas são um lugar especial onde as verdades humanas se mostram sem máscaras...

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