sábado, 14 de novembro de 2009

E a fronteira, pra quê?


Sebastião Salgado

A fronteira tem mesmo isso de épico, sabe, de tema de aventuras; lugar desbordado, onde ninguém sabe quem é quem, nem por quê, nem como, nem praquê. Onde todos chegaram fugindo - como você mesmo - da puta mãe que os pariu num quartinho sujo de um hotel metropolitano, depois de uma gravidez escondida da familia burguesa; barriga contraída pela sua propensão para a maldade, para os desejos proibidos, para a brutalidade, pelo aprendizado pela dor, para tudo que seus pais também faziam escondido. Ela mesma filha de algum melhor amigo de seu pai, que se mudou para o Acre de repente. Ela que queria vir, que deseja viver num ambiente lodoso, ganhar dinheiro distribuindo o prazer e o consolo a tantos homens sem mulher, sem amor, mãe; o Padre, por exemplo; o pastor nos dias de santa-ceia, depois de ficar bêbado com o vinho da sobra, de tentar sodomia com a esposa e ser recusado com argumentos deuteronômicos. Sua mãe sim, sua mãe sabia. A fronteira não é um lugar de deleite; ela sabia que a dor tem um lugar no olhar desse machos. Queria aurir prazer dessa dor, dessa solidão; ter um lugar no coração deles, ser levada para sempre em suas memórias como aquela puta meiga, que dava de graça de vez em quando, e que cobrava mais barato dos machos machões, daqueles que já tinham batido na polícia tentando levar um tiro na cara e morrer rápido, com glória, e um lugar na memória de outros machos, sabe, esses ela adoraria. Mas ela não veio, se arrumou por lá. E enviou você, quer dizer, o expulsou.
Ela o enviou para cá, pra aprender. Mas você não aguenta, não; está viciadinho nos traços clássicos, pelas curvas perfeitas, pela perspectiva, isso é um bosta, pela sétima arte. Não quer viver sem ar-condicionado, teme os animaizinhos de Deus, as pessoas lhe aborreçem, o café expresso falta; teatro é uma maravilha, vc diz que falta cultura. Quer deixar isso de mão, ir embora; mas não pode, não consegue; ficar longe como? Está viciado! No seu mundo não há nada para contar, suas experiências não tem valor, só interesse. Nem profundidade. Quer mais histórias; que eu lhe conte o que aconteceu com o prefeito eleito de Rio Maria, que explique porque a lei aqui soa a-lheio. Mas eu me calo. Silêncio. Espero que me conte algo, me pague com a mesma moeda. Mas vem você com pensamento retilíneo, que aqui falta a civilização, que as fossas poluem o lençol freático, que os vermes. Será possível conversar com você? Como vou lhe contar nossas histórias se você só consegue ver carência? Algo a menos, que graça ao desenvolvimento, que um dia via chegar aqui, blá, blá..
Vou lhe contar algo, sabe, isso que você diz é mentira. Já lhe contei a história do "Corte", sim do corte de cabelo que fiz aqui, quando cheguei. Me dizia o mesmo barbeiro um dia desses que o mundo está ficando pior, que as coisas vão se acabando, que já não se fazem machos como antigamente, que ninguém anda armado, que a polícia agora, só eles querem ser os machos. Que merda, que as pessoas estão ficando fracas, que agora só cagam em vasinho branco e nem sabem o que é um bom sabugo, roletinho. Ele se perguntava como os seus netos poderão viver num mundo assim? E isso é verdade, sabe; o que "falta" é o que nos sobra, transborda. Essa diferença é o que faz de nossas menores viagens um épico, uma aventura pra inseguros, pra você! Mas, não pense que queremos que vá embora, não negamos você, somos generosos,  teimosos, sabe, vamos vencer pelo cansaço e por sua inquieta verve, seu vazio mendicante. Quando se der conta estará mais dentro que fora, sem saída. Brigando com a polícia em busca de um tiro de misericórdia; em busca de uma puta bondosa, de outro macho machão para matar ou para morrer. Quando se der conta, será um de nós, mais um na fronteira.

Um comentário:

  1. Ao ler esse texto fiquei pensando, Dernival, sobre nossa conversa sobre gênero. Talvez você tenha o tenha escrito para ser mesmo um crônica. Pode ser que seja mesmo, enfim...Mas Massaud fala que a vocação da crônica é o efêmero, a pagina de jornal; o esquecimento rápido, que vem veloz. O teu texto, pelo contrário, tem vocação a-temporal, para ser atual enquanto existir margem; fronteira, portanto. Se, como diz Bakhtin, todo gênero é híbrido, a tua crônica é mais conto, talvez; e dos bons. Não sei se seria demais dizer, mas direi sem demasia, é, a meu ver, o teu melhor texto. Ácido, sim; mas eloquente e asfixiante. Arranca prazer da da agonia em lê-lo. Confere prazer pela dor, tal ele mesmo explora. A temática é marginal, aborda o proibido, fala daquilo que se sabe, mas que não se fala, do censurado. Por tudo isso, é universal e pende para o perene. Fico por aqui pensando e gostando cada vez mais do texto.
    Parabéns e abraços.

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