sábado, 12 de setembro de 2009

O corte

Professor Rafael,



não pense que a vida aqui nesta terra de areia é apenas calor; existem outras aventuras. Um ato cotidiano como cortar o cabelo pode se tornar uma pequena aventura e levar você a conhecer alguns personagens muito interessantes. Veja o senhor, hoje acordei com vontade de cortar o cabelo e com essa intenção fui ao centro da cidade. No primeiro salão onde entrei cobravam nada menos que vinte reais. Decidi procurar preços mais populares; ao lado de uma praça encontrei vários salãozinhos. Entrei no primeiro e um senhor, negro, de um metro e noventa me recebeu: cabelos brancos e uma barba feita com um precisão cirúrgica. Perguntei quanto era o corte: era sete reais. Falei que pagava cinco; ele repetiu seco: "É sete reais". Suas palavras possuíam uma convicção, algo pontual, como se desse uma ordem; me decidi a pagar. Sentei-me numa cadeira fabricada em 1962, no centro de São Paulo. Conversa vai, conversar vem; eu tentando ser agradável, perguntei se ele era de Araguaína, "Sim, nascido e criado aqui"; perguntei como era a vida aqui, "Boa", qual o bairro mais violento da cidade, "Onde eu moro, Araguaína sul", e assim foi... Perguntei se roubavam muitos carros aqui, "Muitos, todo dia roba".


Neste intervalo de conversa nada promissora, ele tinha cortado o cabelo e estava preparando a “gillete” para fazer a minha barba. Falar de carro e de roubo de carro abriu o coração dele. Me disse com a navalha não, vindo perigosamente no rumo de minha garganta, "Sabe, eu matei um cara!". Não sei o que aconteceu, mas a cadeira ficou pequena e tive que mexer e virar para conseguir me manter nela."Sabe, eu comprei um carro uma vez", disse isso raspando a maça de meu rosto, "E nem uma semana um cara entrou na minha casa", desceu a lâmina no rumo da garganta, raspando com vigor a minha pele, "mas eu acordei a tempo e ele pulou o muro. Aí eu fui na casa do meu irmão e peguei a 44 dele", perguntei se era a espingarda 44, "é", continuou raspando, "disse para mim mesmo que se esse vagabundo entrasse de novo na minha casa de lá ele não saia". É bom deixar claro que o meu desconforto na cadeira aumentava, parece que ela foi diminuindo de tamanho à medida que conversávamos, "Quando a gente tem que matar, mata mesmo, fica aquila na cabeça. Esperei umas três noite com a 44 e uma noite lá vem o vagabundo" nisso ele estava raspando a região daquela artéria vital (morta!) da garganta, o senhor lembrará professor Rafael, "Esperei ele pular o muro" ele continuou, "e atirei. Caiu estribuchando no quintal, ficou lá". Pensa num homem que riu sem graça: eu! O que a gente diz numa hora dessas, professor Rafael? Respirei aliviado, ele havia terminado. Queria mostrar o trabalho no espelho, eu disse "não, precisa disso não". Me levantei o mais discreto possível, paguei, limpei o pescoço - limpei meu pescoço com muito carinho, professor Rafael - e falei olhando para o chão, "então até mais, mês que vem eu volto....."




Att




Professor Dernival



4 comentários:

  1. Prof. Dernival,

    Como se pôde ver, há dignidade mesmo no mundo do crime. Lembre-se que antes da gratuidade deste tipo de violência, nos deparamos com questões de honra que só são perfeitamente compreensíveis quando olhamos com o olhar abrasador da fronteira. Entretanto, a questão fundamental é: o corte ficou bom? Afinal de contas, "sete real" pode ser algo bem caro se o serviço for ruim.

    Att,
    Rafael.

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  2. olha na minha infinita sabedoria de aluno errante,e no apreço q tenho pelo prof.dernival axo melhor deixar detalhes tecnicos como "se o corte ficou bom ou ruim" pra lá,pois axo q se o pescoço dele ta no lugar o corte ficou bom!!!!!

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  3. se tem pescoço, o cabelo é o de menos.
    se saiu vivo, ok!

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  4. OLá,
    Dernival. Vejo que utiliza muitas fotos em seu blog, isso é bom. Mas melhor seria se desse o crédito a todas elas, às vezes ligando ao local de origem por um linque. Essa mesma é de minha autoria e não há qualquer crédito sobre isso. Há outra de meu amigo Ulisses, tb de Araguaina, sem crédito. Não há mal em usá-las, mas há em não creditá-las. Abraço

    jjLeandro

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